Regras: não há regras, sério
Um lance doido da época em que vivemos é que nunca teve tanta gente ditando tanta regra sobre tanta coisa. É o Youtuber te falando quantos litros de água você precisa beber, é o influencer dizendo quais filmes você deve ver, são adolescentes em redes sociais dizendo que você deve tratar marido como namorado, namorado como ficante e ficante como motorista de Uber, e o motorista de Uber você não deve estabelecer contato visual porque se olhar no olho e depois não der cinco estrelas faltou responsabilidade emocional.
É uma era de opiniões intensas e quase opressivas, em que você vai postar num story que curtiu tal filme e um conhecido vai responder dizendo ODIEI, em que pessoas dizem que gostar de rodízio de pizza é CULTURA HETERO e se você não está acompanhando tal série VOCÊ ESTÁ VIVENDO SUA VIDA DO JEITO ERRADO E NÃO MERECE TER ACESSO A INTERNET, SEU ANIMAL IMUNDO.
Por isso tiramos esse momento da newsletter de hoje pra olhar nos seus olhos e dizer que sério, tá tudo bem. Curte seu lance, sabe? Se hidrata sim, mas respeita o seu ritmo, assiste o que te faz feliz naquele dia, pode falar eu te amo no primeiro encontro, desde que esteja preparado pra lidar com as consequências – uma vez me despedi de um Uber dizendo “tenho um bom dia, amor” sem querer e achei que ele ia ficar desconfortável mas ele pareceu feliz, sabe?
Nesta edição estamos firmes no tema música, com Gabriel falando sobre a treta entre Drake e Kendrick, e João abordando algumas das vítimas das canções do Grupo Bokaloka. Além disso, temos também as famosas dicas e aquele convite de sempre pra que você, se sentir essa brisa, se quiser viver esse momento, faça sua migração pra um dos planos de assinatura paga que temos aqui na Nada de Errado Nisso. Não é obrigatório, claro, mas se quiser pode sim. Não tem regra não.
Breve lista de quatro dos personagens mais injustiçados nas canções do antigo grupo de pagode “Bokaloka”
João Luis Jr
As duas paixões da canção "Duas paixões": um dos sucessos mais emblemáticos do grupo comandado por Renatinho Bokaloka, essa música aborda o drama de um homem que se encontra dividido entre duas mulheres, uma que "está sempre" com ele e outra que ele "sempre quis ter". Numa narrativa ousada e que contém uma das mais poderosas e inconclusivas frases da música brasileira ("eu sempre digo que a amo, meu bem, eu nunca digo isso pra ninguém, mas se estou com minha namorada, eu digo também") vemos aí abordado esse que é o principal tema das canções do grupo, a monogamia não responsável, em que o cidadão basicamente trai a esposa/namorada/noiva e desenvolve através disso uma imensa carga de preocupação e culpa, mas não preocupação e culpa o bastante para parar de trair, apenas preocupação e culpa o bastante para compor uma canção sobre o tema. Muito provavelmente ele não toma decisão alguma, mantém o caso por mais uns cinco anos, só para quando é descoberto e o clima fica muito ruim nos eventos de família.
O namorado da canção "Que situação": uma espécie de "Sopranos" do pagode romântico, já que se trata de uma narrativa contada pelo ponto de vista de um protagonista absolutamente criminoso, essa música narra o desespero de um homem que tem uma relação extraconjugal com uma mulher que já está envolvida em outra relação e que, diante do fato de que ela chegou acompanhada de seu parceiro num evento em que ele também está presente, sugere que ela agrida, xingue e mande o namorado embora, para que eles possam aproveitar juntos aquela festa. Mais uma prova de que o Grupo Bokaloka absolutamente não conseguiria existir num ambiente de não-monogamia em que as pessoas não tivessem amantes, é uma canção que tem a coragem de abordar sentimentos raramente tratados pela música popular brasileira como "amante que sente ciúmes" e "perdão, amigo, eu sabia sim que sua esposa era casada”.
A pessoa que tinha marcado o encontro na canção "Apaixonado pela sua amiga": outro caso de um comportamento de puro vandalismo, ainda mais se você levar em conta que a música parece ser direcionada exatamente para a principal vítima da narrativa, essa é uma canção sobre um homem que marcou um encontro com uma mulher, com interesses visivelmente românticos, mas que, ao ver essa mulher acompanhada de uma amiga, não apenas decidiu que agora tinha interesse é na amiga como teve a audácia de pedir que a protagonista do encontro original o ajudasse em seu projeto de conquista. São três minutos de um verdadeiro ataque à dignidade humana, em que é o eu-lírico não apenas reconhece o acordo inicial como entra numa longa descrição do quanto ficou alucinado com a amiga, que atinge seu ponto culminante com os versos "vou te mandar a real, estou apaixonado pela sua amiga, vê se não fica mal, mas bota ela na minha fita". Barbárie, apenas barbárie.
A namorada na canção "Melhor amiga da minha namorada": um intenso misto de calhordagem coletiva com dissociação absoluta da realidade, essa música apresenta uma espécie de progressão natural de diversos temas das canções anteriores, com um protagonista que já se encontra numa relação extraconjugal, que obviamente envolve a melhor amiga da namorada, porque qual seria a graça se fosse com outra pessoa? O destaque fica porém para o fato de que nesse caso a culpa já foi superada, com toda a responsabilidade sendo colocada no "cupido" que "flechou" os corações, com um eu-lírico que ignora em absoluto a gravidade da situação, com direito a considerações como "ah, como essa vida é engraçada, estou vivendo um conto de fadas", como se o Príncipe Encantado tivesse sim tido um tórrido caso com um dos anões pelas costas da Branca de Neve. Sério, Renatinho era foda, sem condições.
Uma pesada droga chamada nostalgia
João Luis Jr.
Daí que eu estava correndo pelo Aterro essa semana - como esporte, nada de ruim me aconteceu - e topei com um cidadão cantando a plenos pulmões uma música do finado grupo Moptop, o que me levou não apenas a ouvir novamente os dois discos como receber essa matéria aqui, sobre como a banda acabou e hoje o vocalista trabalha na Amazon. Não que eu tenha me sentido especificamente velho - na mesma semana eu fiz minha declaração de imposto de renda e paguei pelo aluguel de um andaime - mas me fez cair a ficha de que sim, eu fui um fã da banda Moptop.
Também teve esse belo texto sobre como o que fazia a franquia “A Múmia” - uma das mais subestimadas do cinema de ação, na minha opinião - funcionar era a química pesada e em dados momentos até desconfortável entre o Brendan Fraser e a Rachel Weisz, e como num mundo onde o cinema de ação é cada vez mais assexuado e os casais normalmente tem a mesma química que uma batata sendo esfregada num piso vinílico, faz uma imensa diferença pro público ver na tela duas pessoas que passam sim a sensação de que desejam se atracar de maneira violenta.
Por fim, topei com essa incrível história oral do filme “O último dragão”, uma obra que marcou minha infância por mostrar um lutador negro de artes marciais que enfrentava um dono de fliperama que queria sequestrar uma VJ porque ela não conseguiu encaixar o clipe da esposa dele na programação. E sim, o filme era produzido pelo chefão da Motown. E sim, são todas palavras que normalmente não andariam juntas e está aí a magia.
Uma Thurman apoiou Drake
Gabriel Trigueiro
Se você é, infelizmente como eu sou, uma dessas pessoas cronicamente online, e francamente eu suponho que você seja (o que diabos você estaria fazendo aqui se não fosse, afinal?), certamente cê já cruzou com alguns links e chamadas sobre a série de diss tracks envolvendo Kendrick Lamar e Drake, claro.
Cá pra nós, não me interessa recuperar a linha do tempo dessa confusão doida, e tampouco meter uma exegese de cada verso ou de ref obscura dos dois: pra isso você tem a turma do Genius, ora.
O que eu quero fazer aqui são apenas duas breves considerações sobre essa baguncinha gostosa, sobre essa fofocada braba etc.
Disse me disse
Quando começou esse negócio de diss pra cá, diss pra lá, o famoso disse me disse (perdão extremo), minha primeira reação foi a de revirar os olhos com preguiça infinda. Pensei: “Ih a lá, já vai começar a medição de pau dos maluco”.
Em algum nível é evidente que esse negócio todo é reflexo sim de uma fanfarronice masculina tóxica e boba. A famosa braggadociousness de rapper — um traço distintivo da cultura hip hop, mas que pode igualmente ser observado em gente como Muhammad Ali, Wilson Simonal, Romário e Miles Davis.
É evidente que a treta Kendrick x Drake também é passível de ser problematizada sob muitos aspectos e ângulos. O fato de que seja um negócio monetizado e mediado por redes sociais, além de controlado por algoritmos de corporações arrombadíssimas, bom, isso tudo confere uma dimensão essencialmente performativa e melancólica ao espetáculo todo.
Além disso, é óbvio, como Tayo Bero bem escreveu no Guardian, que há outros bons motivos para ser crítico a esse circo. Questlove afirmou que o hip hop está morto e, se ainda estivesse vivo e escrevendo, Stanley Crouch provavelmente o definiria como um show de menestrel atualizado — um entretenimento vulgar, destinado a agradar uma audiência majoritariamente branca e filistina.
No entanto, essa é apenas a superfície da coisa. Até agora, por exemplo, não li nenhum texto que mencionasse a tradição dos dozens, como antecedente histórico e cultural desse bafafá. Dozens é um jogo comum em comunidades negras nos EUA, que consiste em dois participantes se insultando, de modo criativo e agressivo, até que perde quem desiste ou quem resolve sair na mão com o interlocutor.
Os insultos podem variar desde aparência física, questões envolvendo street cred e status social, até fofocas sobre sexo e um sem-número de baixarias. A origem dos dozens pode ser traçada na tradição oral africana de países como Nigéria e Gana. Jogar dozens se tornou uma prática disseminada entre jovens negros nos EUA como uma espécie de estratégia adaptativa, uma forma de criar casca, em um ambiente hostil e estruturalmente racista.
À medida que você se torna um jogador hábil, mais preparado você estará para lidar com abusos verbais e toda sorte de agressões psicológicas cometidas por gente branca. Em uma sociedade em que ser negro e perder a cabeça pode te custar a vida, é fundamental ter sangue frio.
Os dozens são a origem comum das yo mama jokes, das batalhas de rap e, claro, dessa tradição de diss tracks tão em voga recentemente.
Iaconelli-se
Lembrei esses dias de um texto equivocadíssimo da Vera Iaconelli, sobre aquele tapa que o Will Smith deu no Chris Rock. Era um texto em que a colunista se sentia à vontade para cravar um diagnóstico bem simplista a respeito da situação, apesar de não ter a mais vaga ideia daquilo que havia acabado de ocorrer. Na época Vera tratou o caso como uma variação de homem fazendo homice, ou qualquer outro bordão inócuo do feminismo branco de internet.
No entanto, ao não racializar a questão, ela perdeu de vista nuances como a importância cultural e a dimensão simbólica do cabelo das mulheres negras e mesmo as particularidades de uma tradição de humor ofensivo feita pelos negros nos EUA. Lembrei dessa coluna branca, extremamente branca, da Vera quando percebi que o feud Kendrick x Drake raramente é interpretado a partir do contexto racial apropriado — com todas as sutilezas e filigranas que isso implica.
Oasis x Blur
O que me leva à pergunta: quando esse tipo de confusão era tradicionalmente causada por garotos brancos do rock, o tratamento dispensado pela imprensa musical era feito no mesmo tom? Não, acho que não.
Como diria Frank Zappa: “Most rock journalism is people who can't write, interviewing people who can't talk, for people who can't read”.
Fora isso, tudo bem.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Tá fazendo uma década do lançamento de “Werner Herzog: A Guide for the Perplexed: Conversations with Paul Cronin” — um catatau de quase 600 páginas de entrevistas com um dos maiores diretores da história do cinema, além de um dos melhores entrevistados que há. A cada vez que o velho abre a boca, você aprende não apenas sobre cinema, mas também, e sobretudo, sobre a vida: em toda a sua beleza, horror e profundidade. Ui.
Toma “Dumb-Hounded” (1943): curta dirigido pelo gênio da animação Tex Avery. Trívia: é a primeira aparição de Droopy, também conhecido no Brasil como Mingau, o basset mais amado da cultura pop. Não que ele esteja competindo com muitos outros, mas whatever.
Excelente a edição focada em música e self care! Aguardando a edição especial skin care!