É um tanto do melhor e um pouco do pior também
Uma frase que a gente tem certeza que acabou de inventar e que ninguém nunca disse antes é que o Brasil é um país de contrastes. Aqui a felicidade é muito feliz, aqui a tristeza é muito triste, aqui quando acontece um lance legal ele tem proporções cósmicas, quando acontece uma tragédia ela é quase sempre titânica.
E isso ficou bem visível nesses últimos dias em que tivemos um show gratuito da Madonna na Praia de Copacabana, um evento com uma pulsão de vida tão forte que algumas espécies já extintas de peixe devem ter voltado a existir apenas pela proximidade, mas também temos uma tragédia no Rio Grande do Sul, com chuva e alagamentos que tiraram vidas e deixaram pessoas isoladas em suas casas.
Daí veio à tona, como sempre, o que a gente tem de melhor e o que a gente tem de pior. Seja a capacidade do brasileiro de celebrar, viver e ser feliz, o nosso talento para ajudar, ser solidário e resgar o cavalinho que ficou ilhado, até a capacidade sempre impressionante, das mesmas pessoas arrombadas, de serem extremamente arrombadas, indo desde a mesquinhez do chato que reclama do trânsito causado pelo show em Copacabana até o mau-caratismo criminoso de quem inventa fake news, defende que comerciantes no RS aumentem os preços dos produtos ou solta aquele “não é hora de procurar culpados, ainda mais porque a culpa parece mesmo ser minha”.
Então nessa edição vamos tentar oferecer pra você um pouco de escapismo, com Gabriel falando sobre a série do Jarrod Carmichael e João refletindo sobre a indignação de certas pessoas com o show do último fim de semana, além das tradicionais dicas, essas pequenas gérberas que colhemos nos mais aleatórios jardins da internet, da música e da literatura para trazer, em nossas bicicletinhas Caloi Ceci de cestinho, para vocês, nossos amigos.
Além disso, queríamos também convidar todo mundo a ajudar, da maneira que puder, a situação das pessoas no Rio Grande do Sul. A gente sabe que filho da puta é muito bom em ser filho da puta, mas ainda acreditamos que as pessoas que querem colaborar e ver os outros felizes podem fazer mais ainda. Seguem aqui alguns links pra quem puder doar e/ou divulgar.
Caramba, galera, vocês realmente querem ficar indignados, hein?
João Luis Jr
Sou de uma geração que cresceu tendo Madonna como, senão a maior, uma das maiores estrelas pop do planeta. Toda música nova era notícia, cada disco lançado era um evento, qualquer atividade da sua vida pessoal era tema de revistas de fofoca nacionais e internacionais.
E numa era pré-internet, onde a comunicação não era tão segmentada quanto hoje, esse nível de projeção não significava “muitos views no Youtube” ou “dois dias nos trending topics do Twitter*”, mas sim “todo clipe passa no Fantástico e as pessoas no Brasil inteiro estão vendo” ou “é a música mais pedida da principal rádio e 90% da população está ouvindo rádio então todo mundo conhece a música”.
Isso significa que, durante os anos 80 e 90 a presença midiática da Madonna, ainda mais no Brasil, foi tão intensa que eu, na época um garoto bem mais interessado em super-herói e tartaruga ninja do que música pop, sabia que ela tinha um clipe beijando Jesus Cristo, sabia de vídeo censurado e tinha pleno conhecimento da existência de um livro dela com “fotos sem roupa”. Tem algumas atividades sexuais, por exemplo, que acredito que ouvi alguém falando no Fantástico que Madonna fazia e só fui entender realmente do que se tratava cerca de 15 anos depois, e isso porque pararam pra me explicar.
Por isso é tão fascinante pra mim que, num país onde se exibia clipe da cantora no programa de domingo da principal emissora de TV, onde a novela “Barriga de Aluguel” teve uma personagem inspirada em Madonna, onde já tivemos até mesmo a honra de produzir um namorado para a diva do pop, na figura de Jesus Luz, as pessoas ainda consigam ficar realmente surpresas e indignadas com um show da Madonna.
E nem falo da indignação alimentada por fake news com uns papos como “dinheiro que seria utilizado para prevenir enchentes no sul foi usado para financiar apresentação” ou da galera que vê um show gratuito de uma das maiores estrelas da história da música numa das mais simbólicas praias do Brasil e reclama do playback, mais ou menos como se Jesus Cristo transformasse água em vinho na sua frente e você dissesse “poxa, mas logo um merlot? não podia fazer um pinôzinho não, messias?”.
Falo realmente do pessoal que tem a mesma idade que eu ou mais, teve durante sua vida inteira acesso às informações da grande mídia e ainda assim consegue, de alguma maneira, ser surpreendido pelo fato de que a mulher que, em 1991, simulava masturbação no palco durante os shows, realiza sim em 2024 uma performance de palco um tanto quanto sensual.
“Meu deus do céu, a Madonna pendurada na Pablo Vittar!”. Em quem você achava que ela iria se pendurar, meu amigo? No Paulo Kogos, enquanto ele falava sobre cavaleiros templários? “Mas esse show tá cheio de pouca vergonha”. Minha senhora, você esperava que durante “Like a Virgin” entrasse no palco a Patrulha Canina e a Madonna ajudasse o Rubble a empurrar um pedregulho? Assim, se surpreender dessa maneira com a Madonna, a essa altura do campeonato, é não apenas de um imenso falso moralismo mas até mesmo um certo sinal de dissociação e desinformação.
Então ainda que seja sim absolutamente parte do jogo da extrema-direita esse constante estado de indignação, essa interminável paranoia de “o que estão fazendo com as nossas criancinhas?”, a Madonna é talvez um desses casos de artista que já quebrou tantos tabus que esquisito seria se ela visse um tabu e decidisse deixar ele ali de boa. Se a galera quer realmente se indignar com alguma coisa melhor falar que, sei lá, contratou a MC Pipokinha pra uma festa de criança achando que era uma animadora infantil e chegando lá ela sentou na avó de alguém e quebrou a bacia da pessoa. Ah, e pior de tudo, usando playback.
*não consigo chamar o Twitter de “X” porque pra mim é muito como um moleque de colégio tentando dizer pra sala por qual apelido ele quer ser conhecido. Não, ninguém aqui vai te chamar de “Marcão XP”, desde a 2ª série seu apelido é “Comedor de Casca de Parede” e vai continuar assim.
Distrações da quinzena
João Luis Jr.
Um lance pesado de andar com cinéfilo é passar por situações como a dessa semana, em que minha amiga Marília usou uma citação de Truffaut pra explicar por que havia gostado de “The Fall Guy”, dizendo que era um filme que expressava a “satisfação de fazer cinema”. E ainda que eu obviamente não tenha a mesma articulação e refinamento – minha cena favorita foi uma perseguição ao som de “Against All Odds”, do Phill Collins e eu ria sempre que o cachorro mordia os genitais de alguém- é impossível não concordar com a ideia de que “The Fall Guy” é um desses filmes exuberantes e apaixonados pelas próprias possibilidades, que consegue oferecer entretenimento e escapismo em grandes proporções, sem deixar de ser ancorado por um elenco competente e carismático. Em suma, diversão da mais alta qualidade e ainda tem uma perseguição ao som de Phil Collins, algo que eu sinto que preciso reforçar pra vocês.
Ainda não tive coragem de ver o filme do Seinfeld na Netflix - a última vez que ele se envolveu num longa metragem uma mulher terminou com seu noivo por causa de uma abelha - mas tenho acompanhado esses video-ensaios sobre as sitcoms que os outros integrantes de Seinfeld tentaram lançar e que pareciam todas "amaldiçoadas" até a Julia Dreyfuss conseguir emplacar "The New Adventures of Old Christine"
Por fim, sou um grande fã do John Mulaney, pra mim um dos grandes comediantes que os Estados Unidos já produziram, e por isso fiquei bem feliz com a estreia desse absurdo conceitual que é o programa de auditório dele, “Everybody's in L.A.”, em que ele basicamente enche o palco de pessoas que vão de outros comediantes até cantores e em dados momentos um robô de óculos escuros, e eles basicamente conversam sobre absurdos que se relacionam, de maneira tangencial, com a cidade de Los Angeles. Valeu muito pra mim.
Um James Baldwin millennial
Gabriel Trigueiro
Há coisa de uns vinte anos li “Meus Problemas com as Mulheres”, de Robert Crumb, e lembro que a minha reação inicial foi mais ou menos a de pensar “Mas como era arrombado o Crumb, hein, pqp”.
Na sequência, entretanto, refleti com calma sobre aquilo que tinha acabado de ler. Crumb tem aquela capacidade, tão sofisticada quanto rara, de autoexposição (intelectual, emocional etc.) que leva a coisa toda até o estado da arte da autoexposição, ou do narcisismo desavergonhado, se você preferir — é um negócio perigoso, cru, muitas vezes autodestrutivo, mas sempre interessante.
Lembrei de Crumb ao assistir “Jerrod Carmichael Reality Show”, na grade do MAX desde o final de março. É uma série documental dividida em oito episódios, com cara de reality, na qual acompanhamos o dia a dia do comediante Jerrod Carmichael, dono de um Emmy pelo roteiro de seu especial de stand-up “Rothaniel”, de 2022.
Em “Rothaniel”, Carmichael sai do armário publicamente como um homem gay. Em “Jerrod Carmichael Reality Show”, ele enfrenta as consequências e o impacto dessa decisão em suas relações pessoais mais íntimas – de encontros com anônimos no Grindr, passando por amigos antigos de infância, até finalmente chegar nos seus pais.
“Reality Show” é especialmente brilhante quando foca nas relações de Carmichael estabelecidas no pré-fama. Por exemplo, seus pais são negros, de background operário, cristãos e da Carolina do Norte. Então é claro que há um choque quando o filho (jovem, negro, gay, mas agora um sujeito rico e morador de Nova York) resolve procurá-los a fim de acertar contas, colocar os pingos nos is, etc.
Jerrod Carmichael tem um senso de humor afiado, irônico e, na maior parte do tempo, cruel e autocentrado. Muitas vezes ele próprio é a punch line da piada, mas acaba arrastando consigo quem está por perto, como efeito colateral — como uma baixa civil, vítima de um estilhaço de uma granada de fragmentação.
“Reality Show” é com frequência um negócio tocante pra burro. No primeiro episódio, Carmichael lida com as consequências de ter se declarado romanticamente para o seu melhor amigo, e de ter sido rejeitado por ele: ninguém menos do que Tyler, the Creator.
Em outro episódio, nosso protagonista interage com amigos de infância, daquele tipo que te conhece de trás pra frente: uma galera com quem ele havia acumulado toneladas de vacilos ao longo dos anos.
Carmichael tem daddy issues severas. Mas até aí, quem não tem né. Seu pai na juventude foi um serial cheater: com amantes, filhos fora do casamento, o diabo. Jerrod Carmichael cresceu se identificando como uma “vítima de fraturas familiares". Ao longo de “Reality Show”, todavia (ou justamente por isso), o vemos trair seu namorado Mike sei lá quantas vezes. É quase como se acompanhássemos de perto a via crúcis de um alcoólatra reincidente: desejo, vergonha, busca por redenção, all that jazz.
Carmichael é um sujeito falível, difícil e contraditório — mas que sempre se mostra em sua inteireza. Perceba como estou evitando aqui a palavra da moda: “vul-ne-ra-bi-li-da-de”.
“Reality Show” é quase um experimento filosófico, que parte da seguinte questão: “O que aconteceria se eu fosse 100% honesto com as pessoas que eu amo?”. Não dá para dizer que Carmichael consegue se pautar por essa régua, nem tampouco que ele tente com muito afinco, vamos dizer assim, mas sua busca por conexão é real e, sem dúvida alguma, produz grande arte.
Quando começamos “Reality Show”, a impressão é a de que estamos diante de uma série de TV de alto nível, criada por um dos melhores comediantes desta geração e tal e coisa. Mas é um troço ainda maior do que isso: à medida que o negócio avança, o tom confessional e o nível de virtuosismo empregados na construção da história que está sendo contada, e nos arcos de desenvolvimento dos personagens, nos fazem crer que o bicho é, sem exagero algum, uma espécie de James Baldwin millennial — se é que é possível um negócio desses.
Sei lá, assiste lá e depois me conta.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Este texto aqui, sobre a época em que a Toni Morrison era parecerista da Random House, durante a década de 1970. Ouro apenas.
Já este ensaio é uma boa porta de entrada para compreender um pouco mais as bases filosóficas do trumpismo: um broder chamado Samuel Francis, sujeito hoje em dia pouco falado pelos próprios conservadores, mas um dos principais responsáveis intelectuais por boa parte do estrago cometido pela insurgência fascista nos EUA.
E, para fecharmos em grande estilo, um insta com apenas uma curadoria de looks incríveis usados pelo Tom Selleck, em Magnum, P.I.