Nada de Errado Nisso #6
X-Men, São Jorge e Ogum
Chegamos ao número 6 da Nada de Errado Nisso, a newsletter da família brasileira: alcoolismo recreativo, dívidas com agiota e talvez o nome na justiça por conta de um probleminha ou outro com a pensão do mais novo.
Aqui não é a seção de dicas, mas convém falar de X-Men ‘97 — tá no Disney+, tem cara de desenho pra criança, parece um pouco desenho pra criança e, bom, talvez seja de fato um desenho pra criança.
Mas é um negócio bem feito à vera e que toca as notas certas para a época em que vivemos. Como diz o João, tem o equilíbrio perfeito entre “lutinha e novelinha”, o que constitui a receita correta para uma história perfeita dos X-Men, a propósito.
Assista mesmo. Bagulho tá biscoito fino, papai.
Ah, sim, o “São Jorge e Ogum” na chamada a gente colocou apenas porque, escrito assim, desse jeito, soou um pouco como o nome de uma música de Jorge Ben. E também porque participamos recentemente de uma Feijoada de São Jorge pra lá de intensa.
Mas deixa baixo que isso daí já é outro assunto.
Nesta edição Gabriel fala mal do novo filme estrelado por Wagner Moura, embora seja fã declarado de Wagner Moura (ouviu, Wagner Moura?), e João Luís, em uma semana especialmente produtiva, discorre sobre os aspectos existenciais de se fazer a reforma de um apartamento e, ainda por cima, nos apresenta alguns “cartões de dia dos namorados baseados no filme Anatomia de Uma Queda, incluindo um pro cachorro”.
Além disso, claro, temos dicas e mais dicas.
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Porque “Guerra Civil” é um filme ruim e eu estou disposto a usar 6.933 caracteres para te convencer
Gabriel Trigueiro
“Sua tia é fascista sim”
Wagner Moura é bonito, talentoso (um dos melhores de sua geração) e frequenta boas rodas de samba com Humberto Carrão. Não é pouco, mas politicamente não aprendeu muito desde “Tropa de Elite”.
Recentemente assisti a uma longa entrevista sua defendendo o filme de Zé Padilha, ao mesmo tempo em que divulgava “Guerra Civil”, o novo de Alex Garland (“Aniquilação”, “Ex Machina” etc).
Wagner Moura, um sujeito de impecáveis credenciais de esquerda, se ressente do fato de que “Tropa de Elite” tenha sido lido por muitos, à época de seu lançamento, como um filme fascista, e, em retrospecto, como uma espécie de antessala para o bolsonarismo.
Seu argumento é o de que um filme “é sempre polissêmico”, e que, em última instância, o criador (ou no caso de uma obra coletiva como um filme, os criadores) não tem controle sobre a interpretação da própria obra, a despeito da intenção original, durante o ato da criação.
O problema é que essa é uma saída fácil, porque ignora as especificidades de linguagem do próprio meio. Quer dizer, mostrar o Capitão Nascimento, de uniforme militar preto, torturando alguém, não funciona muito como uma desculpa do tipo: “Olha, a gente tá mostrando o cara sendo um monstro horrível e tal, é verdade, mas isso não é endosso não, ok? Compra quem quer”, porque, bem, se esse torturador é não apenas construído, mas filmado como um heroi trágico, incorruptível, que lida com seus demônios internos enquanto tenta se guiar por um compasso moral próprio em um mundo desajustado, olha, você está sim estetizando não apenas ele, mas, o que é pior, a política de modo mais amplo.
E, sabemos, a estetização da política é o fascismo com outro nome. Capitão Nascimento é um homem de ação, um dos tropos mais antigos do fascismo, aliás.
O que me leva, claro, a “Guerra Civil”.
O Tropa de Elite deles
No novo filme de Alex Garland, irrompe uma segunda guerra civil nos EUA. Não sabemos como, quando e tampouco o porquê. É uma guerra civil sem lead. Poucas informações nos são dadas: o que sabemos é que o atual presidente americano (Nick Offerman) está em seu terceiro mandato, dissolveu o FBI e foi o responsável por ordenar pelo menos um ataque aéreo contra parte da população civil de seu próprio país.
Como consequência, parte da oposição se organizou e formou a Western Forces (WF), uma coalizão de forças díspares, do ponto de vista político e cultural, como Flórida e Califórnia, imagine você.
Tem uma hora lá em que um paramilitar (interpretado pelo Jesse Plemons) ameaça os jornalistas e, apontando um rifle, faz a pergunta: “What kind of American are you?”. É uma pergunta interessante porque, como alguém uma vez escreveu, se você for francês e comunista, por exemplo, tautologicamente você é um francês comunista. Ok.
Mas na hipótese de que você seja, vamos dizer, um americano comunista, logo você passa a ser tratado como “unamerican” — e nada menos do que a sua nacionalidade é simbolicamente apagada. Avalie.
Em “Guerra Civil” jamais são definidos os lados em disputa: liberais x conservadores? Democratas x Republicanos? Esquerda x Direita? Nada disso, Garland prefere lidar com elipses e embaralhar as coisas a incorrer em qualquer didatismo in yo face. Compreendo.
O problema é que, nesse contexto específico, esse é um jeito preguiçoso e politicamente oportunista de lidar com um problema complexo e cheio de nuances.
Porque ao deixar essa profusão de espaços em branco, a audiência de qualquer coloração política pode projetar seus próprios medos, ansiedades, frustrações e delírios conspiratórios na história que está sendo contada.
Inclusive os neofascistas de bonezinho vermelho podem enxergar, e certamente o farão, uma advertência de como o deep state pode derivar facilmente em um regime tirânico. A consequência mais ou menos natural disso, claro, é o imperativo moral de que os cidadãos de bem se armem e se organizem em núcleos de insurgência contra o poder central.
Naquela mesma entrevista, Wagner Moura argumenta que “Guerra Civil” é um filme que celebra o jornalismo, e o exalta como um dos pilares da democracia, ao mesmo tempo em que critica a “polarização” na sociedade civil. Com relação ao primeiro ponto, nenhum reparo. No entanto, é importante dizer o seguinte: “Guerra Civil” é um filme baseado em uma ideia equivocada.
Não há polarização quando os eixos são o par de opostos civilização e barbárie. A situação de calamidade política, esgarçamento do tecido social e falência das instituições norte-americanas ocorreu não porque houve um excesso de “polarização” no debate público, mas porque a Janela de Overton foi absolutamente arrombada por reacionários radicais e populistas — aka fascistas, se você preferir.
Veja, a minha afirmação aqui não é a de que o problema seja exclusivamente culpa dos conservadores. De modo algum. Na verdade, seria um privilégio poder contar com gente comprometida com freios e contrapesos, estabilidade jurídica e harmonia constitucional.
O problema é que esse tipo de conservador está praticamente extinto. Os poucos que sobreviveram estão abrigados no Partido Democrata, numa coalizão mais ou menos precária, mas que aos trancos e barrancos ainda tem funcionado, com os elementos mais progressistas do partido.
Mas o ponto aqui é o de que a erosão democrática americana é uma consequência do processo de radicalização dos Republicanos. Ponto.
Quando o diagnóstico é equivocado, o prognóstico é ruim. “Guerra Civil” é um filme problemático porque Alex Garland é um diretor inglês com, adivinhe só, uma sensibilidade excessivamente inglesa. Daí decorre que Garland enxerga a decadência do império americano com uma lente, ironia das ironias, colonialista. A despeito do que ele mesmo possa afirmar aqui.
É quase como se o filme fosse todo ele baseado em uma grande schadenfreude britânica: de quem perdeu o poder e deixou de ter ascendência na geopolítica internacional, mas que, não obstante, ainda olha de cima e observa com condescendência os colonos brutos, ignorantes e filistinos, em processo de declínio acelerado e metástase social.
Assim, claro, eles que são brancos que se entendam: mas né.
A24 com dinheiro, mas sem coragem
Longe de mim romantizar precariedade, mas um dos problemas de “Guerra Civil” é o fato de ser um filme da A24 com dinheiro. A24 com dinheiro é menos A24, é só um Michael Bay com roupinha hipster e ecobag da Whole Foods.
Além disso, é um filme que tenta ser apolítico, mas que acaba assumindo uma posição de estetização da política que ele mesmo nega e evita.
A contradição de “Guerra Civil” é mais ou menos a seguinte: se os EUA são um país baseado em ideias, não faz sentido abordar a sua política se você abraça, como opção narrativa, ignorar essas ideias.
Ou pior: não faz sentido falar da sua política enquanto você até formula questões a respeito e tal, mas jamais tem a clareza de respondê-las por si mesmo ou de arcar com o ônus dessas respostas.
Quando você olha o diabo nos olhos, é preciso ter a coragem de chamá-lo pelo nome.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Li recentemente “Ametora: How Japan Saved American Style”, o primeiro livro de W. David Marx, de quem já havia indicado por aqui “Status and Culture: How Our Desire for Social Rank Creates Taste, Identity, Art, Fashion, and Constant Change”. “Ametora” não é apenas um livro sobre moda, é também um argumento cuidadoso sobre circularidade cultural e o tamanho infinito da nossa capacidade de criar coisas belas.
Rachel Syme, uma das minhas jornalistas favoritas da New Yorker (esse perfil que ela escreveu sobre a Sofia Coppola é um assombro), publicou em sua conta no Instagram que um dos primeiros conselhos que recebeu de seu editor foi o de ler os perfis publicados pelo Kenneth Tynan, em “A vida como performance”. Esse aí era um livro que tava no meu radar há anos, mas que só agora consegui enfim sentar a bunda para ler. Imbatível ao extremo.
Assistam a “Snoopy Presents: Welcome Home, Franklin”, na Apple TV. São 40 e poucos minutos com a história de origem de Franklin Armstrong, o primeiro personagem negro de “Peanuts”. Fofura e good vaibe em doses cavalares: antídoto pra lá de eficaz diante de qualquer cinismo e descrença na humanidade.
Gosto muito do perfil desse broder, Diego Velasco, que me foi apresentado pela minha amiga querida Bia Medeiros, que sabe de tudo e mais um pouco. Looks bonitos e sempre interessantes os desse garoto branco. Dá só uma espiadela.
Toma um setzinho forte com as mais crocantes do City Pop, da Soul Music e, claro, da MPB. Um salve para o meu tropinha Venetiglio.
Grandes lições de vida que você recebe quando decide fazer uma reforma
João Luis Jr.
O universo é imprevisível - São muitas as experiências que nos colocam em contato com a profunda imprevisibilidade da existência. A tempestade que surge num dia de sol, o impossível de hoje se tornando o provável de amanhã, aquele momento que você estava andando pelo Largo do Machado, um pombo voou direto no seu peito e você pensou “mas não era pra esse bicho saber desviar?”. Em suma, todo dia o mundo está te ensinando algo sobre como normalmente é fútil a tarefa de tentar prever e controlar aquilo que nos cerca.
Mas poucas situações deixam essa realidade tão clara quanto tentar realizar uma obra. Isso porque na maior parte das vezes, para o cidadão médio, quase todos os elementos do processo se apresentam numa lógica muito semelhante a do gato de Schrödinger. A equipe de pedreiros vai chegar às 09:00, mas pode chegar às 10:00, ou pode não chegar. A sala não vai precisar de mais material, ou pode precisar de um pouco mais de material, ou pode até mesmo precisar de uma quantidade de material semelhante a que os romanos utilizaram na construção do Coliseu. Se a obra está liberada? Bem, ela está 100% liberada, exceto pelo fato de que tem uma parte que não está liberada e a parte que está liberada talvez a gente ainda não tenha a liberação.
Somando isso a sensação de que absolutamente qualquer coisa pode estar escondida atrás de absolutamente qualquer parede - “quebramos aqui no banheiro e descobrimos um oleoduto venezuelano, dois capítulos perdidos da novela “O Clone” e o cadáver do Dr Ulysses Guimarães, então vai acabar atrasando” - e você tem o cenário perfeito pra aprender lições de humildade que apenas a total ausência de certezas consegue oferecer. E olha lá, vai ter que trocar o vidro, um pombo bateu e ficou meio rachadinho.
O tempo é relativo - Quando Einstein apresentou a teoria da relatividade, ele estava se referindo ao fato de que a nossa velocidade altera o tempo, já que quanto mais rápido você se movesse, mais devagar o tempo passaria. Mas mesmo que não tivesse se dedicado à física, o alemão poderia ter chegado a conclusões parecidas diante da simples experiência de acompanhar uma reforminha de apartamento num bairro de classe média.
Isso porque, como qualquer pessoa que já conversou com um pedreiro sabe, o tempo é menos uma entidade fixa, que pode ser experimentada dentro da lógica cartesiana, e muito mais uma massa amorfa e complexa que se dilata e contrai de acordo com as circunstâncias e referenciais. Um azulejo de um cômodo pode demorar mais do que o outro cômodo inteiro, uma pia pode ser entregue entre 3 e 333 dias úteis, a previsão de conclusão completa da obra normalmente varia entre 3 meses (otimista), uma semaninha antes da entropia consumir todo o universo (realista), nunca ser concluída porque na verdade a obra não existe, ela é apenas um castigo que você sofre durante sua jornada no purgatório (pessimista). De qualquer maneira, vamos precisar de mais azulejo, o que já tinha comprado não deu pra completar o banheiro.
Você nunca está realmente sozinho - Existe um ditado que afirma que “é preciso uma aldeia para cuidar de uma criança”, no sentido de que a formação de um novo ser humano é uma ação coletiva, que ultrapassa os pais e envolve também toda a comunidade. Da mesma maneira, conforme a obra for acontecendo, você vai notar que além de toda a mão de obra especializada com a qual você tem a sorte de contar, você também vai ver orbitando em torno dessa reforma absolutamente todo tipo de pessoa aleatória que puder ter acesso ao seu apartamento.
É o suplente do subsíndico que aparece pra confirmar que aquela obra é mesmo uma obra, é um vizinho de seis andares pra baixo que viu movimento na portaria e quis saber o que era, é uma pessoa que aparentemente não tem conexão alguma com o prédio mas te para no elevador pra dizer pra você quebrar as paredes “com cuidado”, como se o seu projeto inicial fosse apenas amarrar seis bananas de dinamite numa pilastra, estilo Wile E. Coyote. Mas você respira, você sorri, você sabe que a simples oportunidade de realizar uma obra é sinal de que você teve sorte o bastante na vida pra ter sua própria casinha - ou que você é uma influencer que reforma apartamento alugado. De qualquer forma, o vizinho do quinto andar acaba de chegar, olhar pra obra e perguntar “vocês tão fazendo obra?”.
Pras noites frescas desse outoninho gostoso
João Luis Jr.
Tem uma cena na série “The Office” em que, durante uma encenação de suicídio para tentar conscientizar a equipe sobre saúde mental, o personagem Dwight pergunta “Depression? Isn't that just a fancy word for feeling "bummed out" e recebe como resposta a frase “Dwight, you ignorant slut”, e é desse jeito que meu cérebro reage comigo mesmo sempre que topo pela primeira vez com algo que causa a sensação que já deveria saber/conhecer faz muito tempo. Então foi assim que me senti quando vi pela primeira vez “Hora do Jantar com Dave Chang”, porque não apenas o Dave Chang é um cozinheiro famoso tem anos como ele cozinha o tipo de comida que me deixa curioso e anda com o tipo de comediante que sempre achei engraçado. Recomendo não apenas o programa como especificamente o episódio dele com John Mulaney e Nick Kroll
No que talvez é minha primeira dica aqui que envolve sair de casa, está rolando no Rio uma montagem de “Algo de Podre”, a adaptação nacional de “Something Rotten”, o musical sobre os irmãos que querem fazer um musical mas enfrentam a concorrência de um certo William Shakespeare. Ainda que a tradução cobre seu preço e demore algumas músicas pra engrenar, achei o resultado final muito divertido e tem uma atuação brilhante de George Sauma, que grande parte do Brasil conhece como Tatalo da série “Toma lá, dá cá”, um dos grandes programas da história da nossa televisão - e não é apreciação irônica, eu sinceramente sorrio sempre que ouço as palavras “pato” e “branco” nessa ordem.
E se a primeira dica foi de programa da Netflix e a segunda envolveu musical, essa é sobre uma sitcom com atrizes de musicais que recentemente entrou na Netflix. “Girls5eva” conta com a Sara Bareilles, de “Waitress” e a Renée Elise Goldsberry, de Hamilton, além da Busy Philipps e da Paula Pell, que é brilhante. É sobre uma girl band dos anos 90 que ganha uma nova chance de sucesso nos dias atuais e mesmo estando nos primeiros episódios já sei que vou acompanhar até o fim.
Pensamento intrusivo dessa edição: “cartões de dia dos namorados baseados no filme Anatomia de Uma Queda, incluindo um pro cachorro”
João Luis Jr.