Nada de Errado Nisso #4
Um segundo carnaval
Chegamos ao quarto número da Nada de Errado Nisso. Enquanto escrevemos este abre, há a possibilidade real, bem concretinha mesmo, de que Jair Bolsonaro seja finalmente preso porque ficou 2 dias na embaixada da Hungria, após entregar seu passaporte para a Polícia Federal. Já pensou? Como diria a bisa: “Quem é burro peça a deus que o mate e o diabo que o carregue”.
Em outra editoria, Madonna confirmou que fará show gratuito na Praia de Copacabana, em 4 de maio. Com Jair preso e Madonna no Rio de Janeiro, podemos decretar não apenas feriado, mas quem sabe um segundo carnaval? Se você topar, eu topo bem topadinho.
Nesta edição Gabriel fala mal de roqueiros (de roquistas, para ser mais exato) e João Luís apresenta um livro-jogo destinado ao público adulto. Segura.
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Afinal de contas, ainda não inventaram motivação melhor para trabalhar do que, bem, dinheiro.
Vamos que vamos. Excelente Sexta-feira Santa e Laroyê.
Contra o “roquismo”
Gabriel Trigueiro
Há papo de 20 anos saiu nas páginas do New York Times um artigo que ainda hoje nos ajuda a compreender um montão de coisas: “The Rap Against Rockism”, do Kelefa Sanneh. Seu argumento é simples, mas poderoso.
Em primeiro lugar, às definições. O que o autor chama de “roquismo” é
(...) reduzir o rock a uma caricatura e depois usar essa caricatura como uma arma. A essência do roquismo é idolatrar alguma lenda do passado (ou algum um heroi underground), e zoar o último popstar; é babar o ovo do punk e mal tolerar a disco music; é amar o show ao vivo e odiar o videoclipe; é exaltar o vocalista que grunhe diante do microfone ao mesmo tempo em que odeia a lip-syncher.
De acordo com a régua roquista, artistas de verdade (o que segundo essa semântica significa artistas de rock) gravam “álbuns clássicos”, ao passo que artistas de R&B no máximo EPs com um ou outro single “guilty pleasure”.
A linguagem empregada ao se referir a qualquer coisa que não seja rock pode variar do ódio aberto ao esnobismo complacente. Kelefa Sanneh lembra, por exemplo, da quantidade desproporcionalmente grande de críticos musicais que usavam e abusavam de expressões como “fulano não é rock 'n' roll o suficiente”, sem jamais se perguntarem se o artista em questão desejava tal coisa.
O contrário também era verdade: como por exemplo o elogio condescendente à Avril Lavigne, feito por um camarada do Chicago Sun-Times na época: que argumentou que roqueiros adultos não precisavam sentir “muita culpa” ao escutarem seus discos — uma vez que ela tocava uma guitarra “aceitável” e “participava” do processo de composição de suas canções. Affe.
Prestar atenção ao rol de inimigos eleitos por essa galera pode ser instrutivo: a pop star; a diva disco; a lip-syncher e o rapper, claro. É mera coincidência o fato de que a maior parte dessas críticas coloque homens brancos héteros contra o resto do mundo?
Para Kelefa, o argumento roquista reflete “não somente uma ideia de como a música deve ser feita, mas também uma ideia de quem deveria fazê-la”.
Outro ponto explorado em “The Rap Against Rockism” é o fato de que os artistas de hip hop levados a sério na época eram todos eles artistas que, de algum modo ou em algum nível, mimetizavam bandas de rock: OutKast, Beastie Boys e The Roots.
O roquismo é a mesma causa primária responsável pela “Disco Demolition Night” — um evento que foi interpretado como mera irreverência roqueira diante de um fenômeno comercial (a disco music).
No entanto, quando você pensa que a ofensiva partiu de um grupo majoritariamente composto por nerds brancos héteros contra um gênero associado à cultura negra e à cultura gay, a coisa ganha outra forma e dimensão.
Algo semelhante, ou pelo menos análogo, foi aquele episódio lá no qual Carlinhos Brown só faltou ser apedrejado por roqueiros, na edição de 2001 do Rock in Rio.
Jamais esquecer também quando Noel Gallagher ficou putinho com a escalação de Jay Z para o Glastonbury. A resposta do rapper, claro, foi espirituosa e se tornou histórica. Na época, foi Vic Mensa quem chamou as coisas pelo nome.
Outro episódio clássico ocorreu quando Britney Spears foi ridicularizada publicamente por não saber quem era Yoko Ono. Como alguém disse em outra ocasião, esse caso ganhou destaque midiático, ao passo que o seu conhecimento enciclopédico e entusiástico de artistas como Janet Jackson e Cher seguiu plenamente ignorado. Por quê?
Não era nem que ela não conhecesse a história da música; o fato era que o passado musical específico dos Beatles não era o seu passado musical. Num mundo pop dominado pelo hip hop e pelo R&B, os Fab Four são uma cultura pop antiga – e qualquer que seja a sua influência na cena contemporânea, uma cultura pop antiga acaba se tornando um interesse de nicho.
Gostem ou não, aceitem ou não, os fãs de rock precisam encarar o fato de que Michael Jackson, Whitney Houston e James Brown são hoje muito mais importantes e decisivos para o pop contemporâneo do que Lennon e McCartney.
Agora, aliás, é aguardar a reação desses broder assim que a Beyoncé finalmente lançar o seu disco de country. Por aqui eu já tou só o gif do Michael Jackson comendo pipoca.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Este texto aqui é bem bom: é meio que uma análise histórica de como uma peça de vestuário específica, a camisa de rugby, teve uma montão de apropriações artsy (David Hockney, Mick Jagger, Kanye etc) ao longo do tempo e o significado que isso assumiu em contextos variados. A capacidade do autor de costurar referências e de construir um baita texto sobre moda, que na verdade é uma crítica cultural bem sofisticada e interessante, é um negócio absolutamente encantador.
Entrevista incrível e grandona com Solange Knowles, para a Apartamento Magazine – dica de minha amiga e artista fodona Juliana Vomero. Solange fala com desenvoltura sobre arquitetura, artes plásticas, o diabo. As fotos do apartamento são lindas e a vontade que dá é a de morar nele para sempre, plmdds.
Longo ensaio sobre a ascensão e queda da Pitchfork: recomendação de meu tropa Bruno Borges. Também é um comentário perspicaz sobre a quantas anda o jornalismo, a indústria musical e a própria crítica profissional — hoje um troço tão distante de nós quanto cheirar rapé, ou qualquer outra excentricidade vitoriana.
Esta entrevista aqui com Yukio Akamine, um senhorzinho japonês que na minha humilde etc. é um dos sujeitos mais elegantes deste planeta (e provavelmente de outros). A entrevista é conduzida pelo Derek Guy, o que transforma a conversa dos dois no equivalente a um Hitchcock/Truffaut da moda. Akamine é um sujeito sábio, e esse é um adjetivo que, acredite, eu só uso com muito critério e parcimônia. Confere lá.
Ah, acho que esqueci de divulgar por aqui. Resenhei no início do mês para O Globo “Ficção Americana”. Baita filme, baita filme.
Mais novas propostas para um reboot da série de livros “Escolha sua Aventura”, só que focado no público adulto
Durante o carnaval você descobriu, quase por acaso, que seu amigo Rafael, que havia se mudado para São Paulo, está de volta no Rio. Vocês se cumprimentaram cordialmente no bloco, que estava barulhento demais pra conversar, e ele disparou um "pô, vamos marcar alguma coisa, colocar o papo em dia", que você cordialmente respondeu com um "com certeza, a gente vai se falando".
Estamos agora no meio de março e, ao ver no Instagram uma foto de Rafael com sua família, você lembra dessa interação, de como era bacana trocar ideia com seu amigo e cogita mandar uma mensagem chamando ele pra uma cerveja.
Vá para a página 5 se você quer entrar em contato chamando Rafael para uma cerveja.
Vá para a página 65 se você acredita que "vamos marcar alguma coisa" é só uma figura de linguagem e apenas um completo psicopata ouve isso e tenta realmente marcar alguma coisa
Você mandou uma mensagem para Rafael, que respondeu com um efusivo "távamos aqui falando de você" e perguntou como você está.
Vá para a página 7 se você quer realmente responder como você está e dizer que não anda tão motivado no trabalho, sua vida pessoal está complicada e sua mãe vai fazer uma cirurgia em breve.
Vá para a página 108 se você está emocionalmente estável o bastante pra apenas responder "tudo bem, e você?"
Rafael respondeu que "tudo bem também" e citou dois outros amigos de longa data com quem você havia perdido contato e que ele reencontrou nesta semana. Você mencionou a lembrança do "vamos marcar alguma coisa" e rapidamente ele soltou um "e aí, quando que tu pode?"
Vá para a página 19 se você quer ser propositivo e sugerir uma data
Vire para a página 82 se você prefere apenas perguntar quando que ele pode
Após perguntar quando ele podia, você recebeu a informação de que sábado que vem, sem ser esse o outro, seria de boa, porque nesse próximo fim de semana eles viajam pra casa da sogra. O problema é que nesse mesmo fim de semana você tem um casamento pra ir, no interior de São Paulo.
Siga até a página 81 se você quer apenas falar que não tem como e deixar por isso mesmo
Vá para a página 31 se você quer propor uma nova data
Após explicar que no fim de semana sem ser esse o outro você não pode, você sugere a quarta-feira da outra semana sem ser a outra, que aí vocês podem ver um futebol mais suave num boteco qualquer e colocar a conversa em dia. Rafael responde que quarta fica complicado porque ele vai precisar fazer um exame médico na quinta-feira, desses que pedem que fique uns dias sem beber. "Mas e na outra semana? Sem ser a outra nem a depois, já no mês que vem, tu poderia? Um almoço, por exemplo", Rafael te pergunta.
Siga para a página 95 se você quer apenas responder "foda, man", falar que na semana sem ser a outra e nem a depois da outra você pode e perguntar qual dia
Vá para a página 67 se você quer, antes de responder, fazer uma breve digressão sobre os seus próprios problemas de saúde
Após falar da sua sinusite que te deixou de cama por uns três dias e ouvir de volta um "foda,man", você, consultando o calendário, confirma que realmente, no terceiro sábado de abril tá legal, você pode. Rapidamente confirma com Rafael - que durante esse processo tu já voltou a chamar de Rafão - a data e vocês meio que encerram a conversa. Entrando no grupo de Whatsapp do trabalho tu vê que a data que vocês marcaram é o dia do almoço da firma, que vai gerente e tu tem que ir.
Siga para a página 35 para tentar remarcar imediatamente com seu amigo
Vá para a página 98 se você sabe que até lá vocês dois já iam ter esquecido que marcaram mesmo
Entretenimento para pessoas que querem ser entretidas
João Luis Jr.
Um hábito que desenvolvi durante a pandemia e que ficou pro home office foi a da “série da hora do almoço”, que é uma comédia, possivelmente bem boba, que gosto de assistir enquanto como aquela coisinha. Uma produção que se encaixou bem com essa proposta e tenho acompanhado nas últimas semanas é “Extraordinária”, disponível no Star+, que mostra as desventuras da única pessoa sem superpoderes num mundo em que todo mundo ganha alguma habilidade especial aos 18 anos. Muito mais uma série sobre jovens adultos do que sobre super-heróis – a única pessoa que chega a usar um uniforme é o namorado tonto da amiga da protagonista – é um programa consistentemente divertido e que não se leva muito a sério. Ou seja, ótima série da hora do almoço.
“Yearbook” é uma espécie de autobiografia do Seth Rogen, que consiste numa variada série de histórias sobre diversos momentos da vida do ator e roteirista. Foi um presente que o Gabriel me deu um bom tempo atrás mas que só agora consegui parar pra ler e gostaria de ter uma imagem do Scorsese com a legenda “absolute entertainment” porque seria a melhor maneira de descrever a obra.
Assisti no último fim de semana “Yentl”, ou, como ficou registrado em minha mente “o filme onde Barbra Streisand corta o cabelo com uma tesoura de costura pra se passar por um garotinho”. E não apenas é uma obra cinematográfica que aborda algumas das questões mais atemporais da nossa sociedade (“é gay querer beijar um cara se ele na verdade era uma mulher mas você não sabia que ele era mulher e achava que ele era um cara?”), como é um desses musicais que você não acredita que em algum momento tenham realmente sido feitos, num grande atestado do star power que Barbra (um dos nomes que considero mais impossíveis de pronunciar) possuía durante os anos 80.
Além da “Nada de Errado Nisso” e da minha outra newsletter, a “Mogo Não Socializa”, voltei a atualizar meu Medium, como faziam as amebas que boiavam no caldo primordial. Se quiser ainda mais textos sobre pessoas em situação emocional precária, sigo presente por lá.