“Não é hora de nós contra eles” é bem o tipinho de coisa que eles dizem quando nós tamos chegando com porrete
Vivemos mais uma incrível rodada de falsas polêmicas nesse fascinante país chamado Brasil, onde tentam fazer parecer que a Janja ter ido dormir sem passar fio dental nos dentes é tão ou mais grave que o que está sendo feito com os palestinos em Gaza. O mais recente debate tem sido sobre todos os danos que seriam causados por uma possível taxação dos super-ricos, com o complicador de que todos os pontos negativos parecem, quando lidos em voz alta, serem pontos positivos.
“Você vai punir as pessoas que mais têm dinheiro!” Sim, parece ótimo! “Vocês vão fazer os bilionários irem embora do país”. Caramba, que gostoso, sei que o Walter Salles vai entender, ele parece um cara muito de boa. “Assim o velho da Havan vai embora pros Estados Unidos!”. Por favor, não faça promessas se você não tem a intenção de cumprir. Voltaram a surgir até mesmo as clássicas ameaças de implantação do comunismo, como se o espectro que rondava a Europa em 1848 fosse o do dono de helicóptero ter que pagar um tiquinho a mais de imposto que o dono do Santana CD 1985, único dono, 13.900 reais na OLX, mas pela tabela FIPE é só 6 mil, então tem margem pra negociar.
Mas sendo esta uma newsletter que se posiciona apenas contra a taxação dos super-lindos (vocês, nossos leitores) voltamos com mais uma edição repleta de informação, análise, crítica, carinho, cuidado e impostos pagos em dia e sem reclamar.
Na Nada de Errado Nisso #32, Gabriel fala sobre Ralph Ellison, João discute a importância dos filmes antigos e os dois se unem, tal qual os super-gêmeos sem um macaco de estimação, para oferecer também as dicas da quinzena, que tem desde ensaio e filme até gibi e música. E da mesma maneira que um filiado do Partido Novo não pode dar bom dia sem pedir uma privatização, nós não poderíamos terminar a abertura dessa newsletter sem lembrar que sim, temos planos de assinatura paga e não, você não precisa ser um bilionário para assinar.
Com apenas 10 reais por mês ou 100 reais ao ano – não é um desconto, nós apenas nos confundimos e achamos que os anos eram compostos de dez meses, é como quando a gente pensa que 2 minutos são 200 segundos – você pode se tornar mais do que um leitor, mais do que um assinante, mais do que um mecenas, um verdadeiro amigo da newsletter, sendo convidado para eventos e recebendo telefonemas de madrugada quando a newsletter bebe demais e decide falar que te considera pra caramba. Você é como um irmão/irmã pra gente, cara!
Por que assistir aos clássicos
João Luis Jr.
Vivemos numa era onde a oferta de conteúdo é intensa e incessante. Toda semana são lançadas vinte novas séries, todo dia aparecem dez novos filmes, em 2020 só a Netflix lançou 52 longas-metragens e ao menos um deles foi protagonizado pelo Mark Wahlberg. Definitivamente não é pouca coisa.
Mas esse excesso de opções não se traduz, necessariamente, em variedade e acessibilidade. A maior parte das salas de cinema é ocupada por franquias, remakes e adaptações e cerca de 80% dos filmes disponíveis nos principais serviços de streaming foram produzidos depois de 2015, um recorte temporal um tanto quanto restritivo, em que um filme de 2002 já é visto como “antigo” e qualquer coisa de antes de 1980 nem é mais tratado como cinema, é você querendo acessar um sítio arqueológico pra olhar pintura rupestre.
E neste cenário em que a oferta parece imensa mas grande parte do que te oferecem é bem parecido, e o acesso é ilimitado desde que você queira acessar bastante do mesmo tipo de coisa, se torna ainda mais importante e interessante assistir aqueles filmes considerados “clássicos”.
Primeiro porque eles vêm, cada vez mais, desaparecendo das programações de TV. Se nossa geração ainda topava com filmes antigos nos canais abertos, seja um “E o vento levou” de madrugada ou um Jerry Lewis na Sessão da Tarde, o encarecimento dos direitos de exibição desses filmes e a ascensão da internet faz com que Globo e concorrentes também exibam filmes cada vez mais novos, assistidos por cada vez menos gente – muito da educação cinematográfica das gerações anteriores vinha não pela vontade de assistir clássicos, mas por falta de possibilidade de ver outra coisa.
Depois porque muitos desses filmes, ainda que antigos, seguem profundamente relevantes e conectados ao nosso tempo. Sátira política onde pessoas que acreditam que flúor na água está deixando todo mundo comunista acabam causando o fim do mundo enquanto uma elite de homens se beneficia disso? Parece bem 2025 mas é absolutamente “Dr Strangelove”, de 1964.
Ou porque muitos deles são absolutamente distantes da nossa realidade e provavelmente não seriam feitos hoje, como um diretor vencedor do Oscar de roteiro e direção por um drama decidir fazer uma comédia envolvendo homens vestidos de mulher onde um massacre real faz parte do roteiro, como Billy Wilder fez com “Quanto mais quente melhor” em 1959 – ainda que o Bong Joon Ho talvez faça algo assim se derem chance pra ele, o homem é realmente ousado.
Mas principalmente porque, bem, muitos filmes bons já foram feitos. Podem não ser os mais acessíveis, podem não ser os que a tela inicial do serviço de streaming oferece ou o que estão disponíveis em mais salas de cinema, mas são filmes que não só ajudam a gente a compreender melhor as obras de hoje – todas as suas comédias românticas favoritas da Meg Ryan só existiram porque Katherine Hepburn estava lá antes, Tom Cruise sempre ressalta como a coreografia dos filmes de ação atuais bebe na fonte dos musicais de antigamente – como oferecem coisas que, muitas vezes, o cinema mainstream parou de oferecer, seja em termos estéticos, narrativos, ou apenas de segurança do trabalho, já que se você estiver assistindo, por exemplo, Ben-Hur e pensar “caralho, irmão, esse cara quase morreu” ele provavelmente quase morreu mesmo, em 1959 era assim, tu amarrava um cara num cavalo, ligava a câmera e só deixava rolar. Tempos mais simples mesmo.
Ralph Ellison, blues e transcendência
Gabriel Trigueiro
Tem aquele programa do Jerry Seinfeld, Comedians in Cars Getting Coffee, em que, a cada episódio, ele levava algum comediante para dar uma volta de carro, tomar um café e bater um papo sobre comédia. É um negócio muito excelente, sobretudo se você for um nerd de comédia, como eu e meu amigo João Luís somos.
Mas o que eu quero falar aqui é sobre um episódio específico, em que o entrevistado é o Eddie Murphy. Esse é um momento especial da série, porque o convidado está afastado dos palcos há sei lá quantos anos e Jerry Seinfeld o convence a retornar à uma rotina de apresentações ao vivo. É um momento bem bonito, e testemunhamos isso praticamente ao vivo.
Outro ponto relevante é quando Eddie Murphy fala sobre o seu início no showbiz americano. De acordo com ele, um momento difícil para ele foi perceber, ainda no começo da carreira, que seu ídolo e principal influência, Richard Pryor, evitava a sua presença sempre que possível.
Tardou até que caísse a ficha, mas finalmente Eddie Murphy compreendeu que o que fazia Pryor o evitar era a crença arraigada nos artistas negros na indústria cultural americana, pelo menos até aquela época, de que ela só conseguia acomodar o sucesso de um artista negro por vez, em cada segmento de atuação.
Nessa toada, a ascensão de Eddie Murphy como comediante era interpretada por Pryor como uma sinalização pouco sutil da indústria de que os seus dias estavam contados.
Como alguém já escreveu uma vez, a experiência de ser negro em uma sociedade racista é uma combinação de paranoia e gaslighting. Sendo o primeiro consequência do segundo.
Me lembrei desse episódio porque estou lendo Shadow and Act, uma antologia de ensaios do meu herói Ralph Ellison. Quero falar aqui rapidão sobre um texto em especial, The world and the jug, que é uma resposta (na verdade uma réplica e uma tréplica) a uma crítica de Irving Howe, na época um dos maiores críticos literários americanos, e figura de proa da esquerda dos EUA, à sua obra e a de James Baldwin, em um ensaio famoso Black Boys and Native Sons, publicado em 1963 na Dissent, uma das publicações de maior prestígio no campo progressista norte-americano.
No ensaio de Howe, o crítico compara a abrangência das obras de Baldwin e Ellison à de Richard Wright, e conclui que embora os dois primeiros sejam “filhos”, ou pelo menos sucessores literários de Wright, jamais conseguiram obter o mesmo grau de complexidade na escrita e a sofisticação política de seu antecessor. Simplificando um cadinho, Howe preferia Wright porque sua escrita era mais “crua”, “raivosa” e “combativa” do que a dos dois “garotos”.
É maravilhoso que The world and the jug já começa com 3 jabs na cara de Howe: 1) Por que a crítica literária, quando é feita por autores brancos1 a autores negros, ela renuncia ao seu aparato crítico mais avançado e privilegia formas mais primitivas de análise?; 2) Por que esses críticos preferem adotar, quase sempre, uma abordagem sociológica e submetem o texto do autor a considerações políticas e ideológicas e raramente estéticas e de ordem formal? e 3) Por que essa crítica, sempre tão preocupada em definir “a experiência negra nos EUA”, raramente se ocupa em representar o quão heterogênea ela pode ser, e acaba a tratando como um troço monolítico e estanque?
Uma das maiores objeções de Howe a Ellison, é o fato de que seu romance festejado, Homem Invisível, é avesso à política, e uma quebra abrupta da tradição do “romance de protesto” representada pela obra de Wright, também criticada por Baldwin, por sinal.
Em um dos melhores parágrafos de The world and the jug, Ellison argumenta que o que Howe deixa escapar, ao longo de sua crítica, é o fato de que não só há política em Homem Invisível, como ela existe para um grande caralho, mas é sutil e está nos detalhes.
O que Ellison fez no seu romance foi criar transcendência, da mesma forma que a galera do blues transcendia as dores do dia a dia, através do sublime na arte.
Tem um momento lá no ensaio em que ele afirma que temia muito mais o conjunto de expectativas e responsabilidades que recaem sobre a figura platônica do “autor negro” do que o ordenamento legal racista, codificado no estado do Mississipi.
No fim, é aquela coisa: diante da tirania externa, sempre há como traçar alguma rota de fuga, por mais difícil e tortuosa que ela seja. Já quando a sua liberdade interior é atacada, o que resta ou fica no lugar?
Somos nós (fãs de comédia romântica) contra eles (gente sem coração)
João Luis Jr.
Após o que acredito terem sido anos de insistência de minha amiga Marília, finalmente assisti “Desk Set”, a comédia romântica de 1957 protagonizada por Katherine Hepburn e Spencer Tracy, com direção de Walter Lang e roteiro de Phoebe e Henry Ephron - os pais da Nora Ephron, aparentemente saber fazer comédia romântica é genético. Porque sim, o filme sobre um engenheiro que é contratado para automatizar a área de pesquisa de um canal de televisão e acaba se apaixonando pela extremamente inteligente e capaz chefe desse setor pode não ser a mais famosa das parcerias Hepburn/Tracy, mas transpira carisma, oferece profundo entretenimento e é um remake que já se escreve sozinho, só trocar automatização por IA e esperar o dinheiro da Netflix cair.
Muito bom também esse artigo antigo do “The Ringer” sobre rainhas e reis da comédia romântica, que dá um panorama dos principais nomes do gênero desde os anos 30, indo desde Hepburn/Tracy até as comédias românticas contemporâneas, passando por Meg Ryan e Tom Hanks. Gabarito e base pra pesquisa.
Ainda que “I’m Your Man”, o filme alemão de 2021 protagonizado por Maren Eggert e Dan Stevens (com um tiquinho de Sandra Hüller) com roteiro e direção de Maria Schrader não seja exatamente uma comédia romântica, já que tem um pouco mais de drama e ficção científica do que se poderia esperar, ele vale como mais uma excelente adição pro subgênero “gente namorando robô”, por oferecer uma rara perspectiva feminina para o tema, menos sobre as implicações éticas e mais sobre as questões emocionais e psicológicas envolvidas numa relação com alguém “feito sob medida” pra você.
Já com alguma comédia e algum romance, mas dificilmente sendo considerado uma comédia romântica, “Extermínio 3: A evolução” é o retorno às telas da franquia “Extermínio” - que não chega nem a ser necessariamente uma franquia, já que o segundo filme não tem necessariamente nenhuma conexão com o segundo e o terceiro pode ser entendido sem que você precise ter visto nenhum dos outros dois. Mas seja como continuação ou filme isolado, a questão é que “28 Years Later” (o título original e que faz muito mais sentido do que a tradução) é mais um grande trabalho de Alex Garland e Danny Boyle dentro do gênero “zumbi corredor”, abordando questões que vão desde violência até a morte da infância, passando pelo quão complicado pode ser encontrar um médico que atenda o convênio da sua mãe. E claro, zumbi pauzudo. Assim, se o que você achava que faltava nos filmes de mortos-vivos era os bichos terem pênis maiores, meu amigo, esse é o filme pra você, sem brincadeira alguma, se esse for seu lance, você vai se divertir.
Agora duas recomendações de gibi. Uma é a premiada fase do Asa Noturna escrita pelo Tom Taylor e desenhada pelo Bruno Redondo, uma das grandes coisas realizadas nos quadrinhos mainstream nos últimos anos, com aventura, romance, piratas, humor e um cachorrinha muito fofinha (Bitewing eterna, jamais mude), que começou na edição #78 e termina na #118, pra tristeza dos fãs de gibi de super-herói. Outra é “Batman – Dark Age”, mais uma colaboração de Mark Russel e do casal Mike e Laura Allred, numa releitura muito interessante do Homem-Morcego que pode ser lida em parceria com “Superman – Space Age” mas também funciona muito bem sozinha.
Por fim: voltei ao mundo dos realities, mais especificamente o eterno “90 dias para casar” acompanhando os já famosos Larissa e Colt, um casal formado por uma mulher brasileira debochada e sem grande controle emocional e um homem americano absolutamente bunda mole que mentiu pra ela sobre o quanto de dinheiro possuía e agora precisa arcar com as consequências. Absoluto entretenimento, um cara chamando a polícia pra prender a noiva 4 dias antes do casamento e ainda assim casando, muito obrigado Josi por ter me apresentado isso tudo.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Talvez eu esteja obcecado com esta canção, sobretudo com a letra, e com essa interpretação.
Sobre a chegada de Jonathan Anderson na Dior, como diretor criativo.
Nile Rodgers testou seus conhecimentos musicais.
Miles Davis e Chaka Khan, em Montreux, em 1989.
Toma esse Programa Ensaio, com Emílio Santiago.
Tou lendo Mumbo Jumbo, nessa edição lindona publicada pela Editora Zain. E é isso tudo e mais um pouco, papai.
Billy Wilder sobre o tal do “The Lubitsch touch”.
Ainda sobre Lubitsch, Peter Bogdanovich recomenda quatro comédias do cabra.
O que não é exatamente o caso de Howe, que era judeu, mas Ellison volta a esse tópico lá pelo final do ensaio e abre um discussão complexa, cuidadosa e interessante sobre identidade e assimilação nos EUA.