Nada de Errado Nisso #3
“Ainda é março, Capitão”
Todo mundo falou que o ano só ia começar depois do carnaval mas ninguém disse nada sobre em que condições a gente iria estar depois que o carnaval acabasse. É surto de dengue, é geral com covid, é bastante gente com gripe e pessoas que parecem ter sido picadas por um aedes que pegou covid beijando no bloco e depois cheirou loló na mesma latinha que outras 16 pessoas. Só aqui na redação tivemos gripe misteriosa, otite, sinusite, alergia e ao menos uma suspeita de peste bubônica após o João achar um rato na rua, colocar em cima da cabeça e falar pro roedor a frase “agora você vai controlar meus movimentos no trabalho”. Resumindo, não acreditem em tudo que vocês veem nos desenhos da Pixar. O rato passa bem.
Ou seja, se você, assim como a gente, está só agora terminando de se recuperar das consequências do carnaval, sejam elas físicas ou psicológicas, esperamos que essa newsletter te encontre bem, te encontre suave, te encontre descansada, te encontre relaxado. Porque ela vai te encontrar, não adianta fugir, olha a newsletter chegando, se trancou no banheiro ela passou por baixo da porta, fugiu pra casa da sua mãe, a gente sabe onde seus pais moram, deletou o aplicativo de email, imprimimos a newsletter, enfiamos dentro do seu boleto de condomínio. Colocou sua playlist de academia, todas as faixas são Gabriel lendo os textos dessa edição. Estilo ASMR, sabe?
E falando nesta edição, temos sim coisa boa. Gabes vem falando sobre a eleição presidencial norte-americana, João segue lidando com sentimentos complicados e também temos as famosas recomendações da casa, porque sabemos que todo mundo tá precisando daquela distração pra não pensar que os caras deram um Oscar de melhor filme pra Oppenheimer, uma obra com 3 horas de duração onde não há absolutamente nenhuma cena de tribunal em que alguém argumenta que sim, estava tocando a música P.I.M.P. do artista 50 Cent, “mas era uma versão instrumental”.
Finalizando: se essa newsletter te trouxe alegria, te gerou satisfação, te deu aquele brilho nos olhos, aquele sorriso de cantinho de boca como quem deseja e anseia, considere manifestar essa simpatia de forma financeira e aderir a um dos nossos planos de assinatura paga. Por apenas 10 reais mensais, por exemplo, você ajuda a financiar essa publicação e, em breve, terá acesso a conteúdo exclusivo, como contos e outros materiais que estamos produzindo na surdina, no silêncio, trabalhando enquanto eles dormem, digitando com a luz apagada, escondidos dentro de pequenas grutas em locais inóspitos, bloquinho de papel na mão, vestidos apenas com trapos, pensando “como podemos gerar mais conteúdo de qualidade para nossos assinantes?”. O ano começou, pessoal, e nós estamos animados, dispostos e bem de saúde. Vamos que vamos.
Mais alguns breves sentimentos de desconforto da idade adulta
João Luis Jr
Ficando chateado com coisas que você não tem o direito de estar
Boa parte da vida adulta é, se você for pensar, um grande open bar de chateação. Tu vai ficar chateado com coisa do trabalho, tu vai ficar chateado com coisa de família, tu vai ficar chateado com relacionamento. Tu vai assistir jornal e vai ficar chateado, vai receber áudio de whatsapp e ficar chateado, às vezes tu vai acordar, realizar uma tarefa simples como olhar pro relógio ou sentir a temperatura do quarto e já tomar o pesado caixote de uma forte onda de chateação.
E todas essas coisas que te deixam chateado podem ser, a grosso modo, separadas em duas grandes categorias. Uma é a das coisas que você tem o direito de estar chateado. A luz que foi cortada por engano quando você tava com a conta em dia, o cidadão que tentou furar a fila na sua frente, o chefe que te pediu pra trabalhar no meio das férias. São coisas que, se tu contar, qualquer um vai ficar “porra, aí é foda, tu tá na sua razão, vacilaram contigo”. Tu vai ficar menos chateado por causa disso? Obviamente não vai, mas ao menos, num campo ali, vamos dizer, conceitual, você tem o consolo de saber que num cenário de queda térmica de justificativas, você não morre de frio, pois está sim coberto de razão.
Mas aí tem a outra categoria, claro. Que é a das coisas que você tá sim chateado, mas você não tem exatamente muito direito de estar. É você frustrado porque a pessoa não tá agindo da maneira que você idealizou na sua cabeça, é alguém te negando um negócio que tu nunca chegou a pedir - então não tinha como saber que tu queria - é você contando com uma coisa que nunca te prometeram e ficando puto quando não acontece. Cenários em que além de estar chateado pelas situações, você possivelmente ainda está chateado consigo mesmo por estar chateado com essa situação, já que a única coisa pior que estar chateado é nem poder reclamar da coisa que te deixou chateado, porque aí além de estar chateado você ainda estaria sendo meio babaca.
Nessas horas, operando a vida adulta como ela opera, sua luz vai ser cortada por engano, alguém vai furar a fila na sua frente, ou você vai ter que trabalhar num fim de semana ou feriado, o que não vai te deixar menos chateado, mas ao menos vai te dar algo pra reclamar com razão.
Querendo reclamar com os amigos porque algo não deu certo mas não conseguindo porque eles tinham te avisado que não ia dar certo
Daí que te deram conselho, certo? Gente próxima, gente querida, te alertou, te avisou, sinalizou, só faltou pegar pincel atômico e desenhar pra ti num quadro branco. Mas tu não ouviu, claro. Teu coração era um alazão selvagem, sua cognição era um tubarão com anseios primitivos, você tinha a coragem dos pioneiros e não ia desistir de algo só porque na teoria parecia uma ideia terrível. Então você comprou na Shopee a fantasia de São Tomé e decidiu ali, sem hesitar, que só iria acreditar vendo. E aí você viu. E bem, todo mundo tava certo. O lance deu espetacularmente errado, você se fodeu todo, no Tripadvisor da viagem errada foi seis estrelas de cinco possíveis, sua tomada de decisão foi tão ruim que dois estudantes de neurologia querem escrever um artigo sobre como seu cérebro pode servir pra refutar séculos de teoria evolucionária.
Você está fragilizado, você está na merda, seu coração agora é um “My Little Pony” com a patinha quebrada, sua cognição um peixe beta tentando pular do aquário. Tu quer alguém pra conversar, alguém pra desabafar, tu é um quebra-cabeça do desenho Frozen espalhado por um quarto de criança precisando que alguém recolha as pecinhas. E quem são as pessoas que poderiam fazer isso por você? Exatamente as pessoas que, em primeiro lugar, te avisaram, te alertaram, te sinalizaram, que esta merda desta ideia não ia dar certo.
E elas vão te acolher? Claro que elas vão, pois te amam. Elas vão te apoiar? Com certeza que sim, porque são pessoas ótimas. Mas em algum dado momento, que pode ser no começo, pode ser no meio, pode ser até mesmo anos depois, quando você tiver até esquecido a situação toda, elas vão te olhar nos olhos e falar “eu avisei, né? não pode falar que eu não avisei”. Com certeza elas vão. E aí tu vai realmente torcer pra luz do local ser cortada por engano, que ao menos desvia a atenção de geral e tu não é mais o assunto.
Não é guilty pleasure porque sinceramente não sinto culpa alguma nisso
João Luis Jr.
Sou um fã declarado da artista Ludmilla não apenas pela trajetória extremamente vitoriosa que ela tem na música – tu começar como MC Beyoncé e depois não apenas criar sua própria identidade musical como chegar num ponto em que tá trocando ideia com a Beyoncé não é pouca coisa – como também pela amplitude musical da mulher, que canta funk, pagode, pop, música sobre ser amante de homem casado, música sobre levar a esposa pra Maldivas. Mas acima de tudo sou fã porque gosto pra caramba do material, e o recente lançamento do volume 3 da franquia “Numanice”, esse “Velozes e Furiosos – Tokyo Drift” do nosso pagode, apenas comprova que a cidadã sabe o que faz. Tiros, porradas, bombas, aplicação de TNT no coração e uma versão em português de “So Sick” do Ne-Yo que sinceramente, exige mais coragem que remake de “Cidadão Kane”. Tenho ouvido muito, tenho cantarolado no elevador, se tocar “Você não sabe o que é amor” vou gritar no refrão.
Após ver diversos filmes indicados ao Oscar e desenvolver as mais intensas opiniões sobre obras reconhecidas pela crítica, me permiti o conforto de uma comédia romântica e fui muito feliz com “Anyone But You”, uma adaptação de uma das tramas de “Muito Barulho por Nada” de Shakespeare que tem plena e absoluta consciência de que ninguém ali quer ver a roda ser reinventada, queremos apenas ver pessoas bonitas se apaixonando, vivendo desencontros infantis mais ou menos engraçados e aí ficando juntas de novo no final. Supriu demais essa necessidade e ainda teve algumas boas piadas sobre como gente que trabalha no mercado financeiro realmente consome um pouco mais de droga do que a média da sociedade. E ainda tem essa querida canção aqui que venho ouvindo durante o banho todo dia de manhã, pra sair de casa numa energia legal.
A Bárbara Carneiro, da ótima newsletter Sintética, me mandou esse link de uma matéria da Vulture em que tentam usam The Sims 4 pra descobrir a causa mais provável da morte do Samuel em “Anatomia de uma Queda” e sinceramente, é algo que todos deveriam ler.
Finalizo com esse artigo aqui sobre como Paul Giamatti não ganhou o Oscar em 2024 mas não apenas merecia como já deveria ter vencido antes, porque sou um grande fã de Paul Giamatti e sua capacidade absurda de interpretar homens que já estão mortos por dentro.
Uma notícia ruim e outra um cadinho pior
Gabriel Trigueiro
Olha, eu tenho uma notícia ruim e outra um bocado pior. Qual você quer primeiro? Bom, a ruim é que provavelmente Donald Trump será eleito novamente presidente dos EUA. A outra é que isso ocorrerá com a ajuda parcial do eleitorado negro.
Não tem muito tempo Trump afirmou que os negros norte-americanos se identificam com ele porque enxergam em sua trajetória as mesmas perseguições e discriminações que sofreram ao longo da história. Sério, ele disse isso mesmo. Na moral.
O ex-presidente, não custa lembrar, foi o cara que já jantou com o supremacista branco Nick Fuentes; passou pano para os racistas naquele episódio lá em Charlottesville; surgiu na política recente como um dos maiores divulgadores da teoria da conspiração (e apito de cachorro racista) relativa à certidão de nascimento de Barack Obama e, last but not least, foi um entusiasta da prisão dos garotos negros inocentes no caso conhecido como “Central Park Five”, no fim da década de 1980.
Em 2020 Joe Biden foi eleito com 87% dos votos da população negra dos EUA. Em pesquisa feita em outubro de 2023, com abrangência nacional, essa porcentagem caiu para 71%, com a mesma fatia demográfica.
O que aconteceu de lá pra cá?
Uma pesquisa New York Times/Siena College feita entre outubro e novembro mostrou que 22% desse eleitorado, em pelo menos seis estados decisivos, indicou intenção de voto em Donald Trump: uma fração maior do que a recebida por qualquer Republicano em qualquer pesquisa presidencial datada pelo menos desde 1980.
Daí é possível se indagar a respeito de qual afinal é a justificativa para o encanto de um político com um histórico abertamente racista, e o responsável por capitanear um movimento de massas cuja cola é o supremacismo branco old school norte-americano — do tipo que muita gente inocentemente considerava morto durante a eleição de Barack Hussein Obama.
O negócio é que muitos analistas argumentam que esses números recentes se explicam menos pelo apelo do trumpismo e muito mais por um senso de apatia diante de uma atitude histórica de negligência e desdém do Partido Democrata com a população negra. Isso, claro, aliado à uma estratégia de comunicação pouco hábil por parte do partido de Joe Biden.
Ao longo desses anos o atual governo propôs um monte de medidas sociais e de infraestrutura pouco divulgadas: como por exemplo 2.2 bilhões de dólares em linhas de crédito e auxílios a fazendeiros negros em zonas rurais do Meio Oeste.
A dificuldade, no entanto, está em argumentar que “o governo poderia ter ido mais longe se não tivesse sido a obstrução dos Republicanos no Congresso”. Mas por algum motivo que me escapa não há nenhum Democrata fazendo isso neste momento.
“Ninguém acha que a gente vai ganhar o voto dos negros”, afirmou recentemente um membro da coordenação de campanha de Trump. “Mas se a gente conseguir 10% a mais de votos desse eleitorado, a eleição já está definida.”
Outro assessor comentou que a estratégia da campanha Republicana foi focar em grupos específicos que já demonstravam alguma inclinação conservadora: homens negros proprietários de armas e homens negros não apenas cristãos, mas frequentadores assíduos de igrejas hostis à agenda progressista nos EUA.
Uma conclusão intelectualmente preguiçosa, e certamente racialmente problemática, seria a de culpar esse eleitorado por conta dessa maluquice toda.
Mas o negócio é que é o Partido Democrata quem precisa rever décadas de suas políticas públicas, nacionais e regionais, dirigidas a essa parcela da população, além da sua própria estratégia de comunicação, antes de qualquer outra coisa, claro.
Senão estaríamos diante de uma inversão de causalidade muito da doida. Aí, e só aí, os Democratas terão alguma moral para reclamar do que quer que seja no dia da eleição.
Enquanto isso, no entanto, o tempo está correndo a favor do fascista cor de abóbora.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Já enchi o saco de um monte de gente recomendando “Think Twice: Michael Jackson” — um podcast com 10 episódios, produzido pelos jornalistas Leon Neyfakh e Jay Smooth, sobre o legado de Michael Jackson no pop e na cultura, de modo mais amplo. É um dos troços mais bem pesquisados que já vi e, além disso, tem um storytelling e um ritmo incríveis. O domínio narrativo dos caras é brabíssimo e eles conseguem um negócio bem difícil: evitar que o programa todo fosse sequestrado pela questão lá das acusações de abuso infantil — fosse para refutá-las ou reiterá-las. Este, é claro, é um tópico que não é evitado. Muito pelo contrário. Ele só não é o centro da história que está sendo contada. Leon Neyfakh e Jay Smooth exploram ângulos originais, aliás: como por exemplo o fato de que Michael Jackson tenha sido, durante tanto tempo de sua vida, Testemunha de Jeová. Serinho, escuta lá. É bom demais.
Tem um disco do Snoop Dogg, de quase uma década (2015), injustamente pouco falado, o que sempre me parece uma maluquice sem igual: “Bush” é o nome. A produção é do Pharrell, e daí você tira. Há participações elegantes do naipe de um Stevie Wonder, de um Charlie Wilson. Também gosto muito do fato de que seja um álbum muito mais voltado para o R&B, o soul, o funk e até a disco music do que para o hip hop. Merece destaque e mais ouvintes.
Esses dias, conversando com a minha mulher, lembrei de “The September Sessions”, um documentário de surf, dirigido pelo Jack Johnson (sim, aquele mesmo). Conheci o sujeito antes de ser apresentado à carreira musical dele — tenho o “On and On” e amo, então nem tente falar mal dele perto de mim. Mas voltando ao filme: além de músico Johnson já foi surfista profissional, chegou a aparecer em “The Endless Summer 2” (1994), e é graduado em Cinema, pela Universidade da Califórnia. Daí ocorre que “The September Sessions” é sobre o momento em que Jack Johnson decide ir para a Indonésia passar um tempo em um barco, pegando onda com uns broder e tal. Acontece que os broder eram alguns dos maiores surfistas da época: Kelly Slater (literalmente o maior de sua geração), Rob Machado e Shane Dorian. As imagens são lindas e o momento é muito especial: registra o primeiro hiato profissional de Slater (ou tentativa de aposentadoria), quando ele se sentiu absolutamente engolido pela publicidade e o capitalismo mais rasteiro do seu meio, porque havia largado o surf profissional mas a indústria se recusava a tratá-lo como um ser humano, mas apenas como uma marca e um joguete sem vontade própria. A viagem com seus amigos à Indonésia é uma tentativa de fuga desse inferno. No fim, “The September Sessions” tem uma atmosfera quase religiosa de beleza, contemplação, comunhão e transcendência.
E, para concluir, recomendo um livro de 2001: “The War Against Cliché”, uma antologia de críticas literárias de Martin Amis. Tem textos publicados originalmente na New Yorker, Observer, um monte de lugar. Amis escreve sobre violência no cinema e analisa a possível influência de “Brinquedo Assassino 3” em dois homicídios; resenha, e critica sem misericórdia, uma biografia de Hillary Clinton; fala com graça e ironia sobre os diários de Andy Warhol (que segundo o escritor inglês só dizia besteira e coisas desinteressantes sobre arte, mas brilhava quando falava sobre bichos e dinheiro); analisa Jane Austen (para ele, todos os livros da autora deveriam ser lidos como comédias); e, a propósito, escreve sobre os fundamentos da comédia e argumenta que “o eufemismo é a negação do humor”. Amis morreu no ano passado e muito se falou sobre o seu talento como romancista. É justo. Mas me pergunto se também não é uma boa hora para recuperarmos o ensaísta.