Muitas vezes a gente nem é bebê mas também fica se sentindo meio reborn das ideias
Da mesma forma que se dizia que o maior truque já realizado pelo diabo foi “convencer o mundo de que ele não existe”, é muito provável que o maior feito das redes sociais seja exatamente o contrário, que é criar a sensação de que nada existe fora delas.
Isso porque ainda que redes como Twitter, Bluesky e Threads tenham um número de seguidores muito baixo em comparação aos números gerais da nossa população ou mesmo perto de outras redes sociais, elas seguem tendo uma fascinante capacidade de pautar, em algum grau, o debate público, seja porque esse “debate público” acontece nessas mesmas redes sociais, seja porque a grande mídia se mostra tão desesperada por relevância que se algo aparece nos trending topics vai acabar virando pauta no Fantástico.
E um incrível exemplo recente dessa tendência é a questão dos chamados “bebês reborn”, bonecos artesanais hiperrealistas que existem desde o começo dos anos 2000 mas com os quais ninguém estava se importando muito até receberem nas últimas semanas uma nova leva de atenção que transformou o que antes era um hobby excêntrico em uma verdadeira questão de saúde pública.
Políticos querem impedir que mães levem seus bebês reborn para serem atendidos no SUS, algo que provavelmente nunca aconteceu; perfis discutem a epidemia de bebês reborn como se 98% dos bebês que a gente vê na rua fossem de plástico; influencers perguntam por que as mulheres que tem boneco de bebê não recebem o mesmo respeito que os homens que tem bonecos de super-heróis, o que traz a tona não só preconceitos de gênero como também a questão de quem são essas pessoas que andam tratando com respeito um homem que tem boneco de super-herói. Não é normal isso aí.
Mas numa era em que rede social é tratada como vida real, em que as pautas do Chico Barney se confundem com as do Profissão Repórter, e muito é debatido sobre a possibilidade uma influencer ter confundido um microfone com um canudo de propósito, às vezes ficam realmente borradas as linhas que separam um meme, um problema de verdade, um meme que virou um problema de verdade, ou um problema de verdade que virou um meme. Ou apenas, como alguém já disse, “god forbid women have hobbies”.
E é nesse pique de total apoio às mães de criança, de pet, de planta e de bebê reborn, que chega até você mais uma edição da “Nada de Errado Nisso”, uma newsletter que também sonha em se tornar pauta do programa da Luciana Gimenez e concorda com Chico Barney sobre os filhos da Odete Roitman serem bem piores do que ela. Nesta edição temos Gabriel falando mal de samba e João discutindo a série “Andor”, além das nossas dicas da quinzena, os verdadeiros trending topics do nosso coração.
Por fim, fica aqui nosso famoso convite para você, nosso querido assinante gratuito, se converter num assinante pago e garantir a nós esse valor mensal que será integralmente investido num bebê reborn, cuja guarda ficará compartilhada entre João e Gabriel. Pai não é quem faz, pai é quem cria.
Tudo bem a revolução ser televisionada, só não esperava que fosse passar no Disney+
João Luis Jr.
“Andor” é uma série de TV, lançada em 2022, baseada em personagens do universo de “Guerra nas Estrelas” e criada por Tony Gilroy, responsável pela triologia “Bourne”. Um prequel para o filme “Rogue One”, de 2016, ela conta a história de Cassian Andor, um integrante da Aliança Rebelde que tem participação essencial num importante evento da trilogia clássica, que é a explosão da “Estrela da Morte”, a estação espacial gigante que é destruída no primeiro filme da franquia.
Ou seja, “Andor” é uma produção audiovisual da Lucasfilm, parte do conglomerado Disney, que está firmemente inserida como parte de uma franquia de fantasia espacial onde hominhos brigam com espadinha que brilha, bichinhos que parecem sapo falam de forma engraçada e arminhas de laser fazem “piu piu piu”.
Mas ao mesmo tempo “Andor”, é muito provavelmente a produção audiovisual mais politicamente radical, antissistema e disposta a abordar temas como ascensão do fascismo, encarceramento em massa como forma de controle social e geração de mão de obra barata, uso de propaganda pela extrema-direita, colonialismo e extrativismo a já ser exibida por um grande veículo em nível global ou receber esse volume de investimento.
Isso porque a história do rebelde Cassian Andor, interpretado por Diego Luna, que começa a trama como um simples ladrão num planeta periférico, mas acaba se envolvendo com os movimentos rebeldes após perceber como a presença do Império em sua vida vai se tornando cada vez mais cruel e sufocante, e como se mobilizar politicamente é a única solução diante da ascensão de um regime totalitário, mostrou uma face da saga de George Lucas que sempre existiu, mas recebia pouquíssima atenção, que é o papel das pessoas comuns.
Longe da armadura de um Darth Vader ou dos poderes jedi de um Luke Skywalker, pudemos ver a ascensão do Império, atrelada a burocratas que estão apenas “fazendo seu trabalho” ao destruir planetas e operar colônias de trabalhos forçados, e o combate a essa mesma autoridade, realizado pelos camponeses e rebeldes que lutam contra a opressão não porque tem poderes especiais ou foram escolhidos, mas apenas porque, se não eles, quem mais vai lutar?
“Andor”, com seus 24 episódios, divididos em duas temporadas, é em dados momentos praticamente um manual revolucionário, abordando desde a “banalidade do mal” mencionada por Hannah Arendt até os conflitos internos que surgem na mobilização da esquerda, chegando ao extremo de ter um personagem chamado Nemik que está escrevendo um “manifesto” sobre como inevitavelmente o jugo imperial iria ruir sob o poder do povo.
Mas tudo isso, todo esse discurso político, toda essa análise da opressão de classe e do poder de um império que usa a mídia para controlar a percepção das pessoas de forma que elas não se rebelem diante de uma opressão cada dia mais visível e cruel, está sendo exibido, para assinantes, no serviço Disney+. O que, obviamente, também pede alguma análise.
Primeiro porque é impossível não questionar uma posição antissistema vinda de um conglomerado que basicamente ajudou a construir e até hoje define o que é o sistema. Andor é um produto Disney, financiado pelo Grupo Disney, com o objetivo de aumentar o número de assinantes de um serviço Disney. Sem negar o talento dos envolvidos ou a qualidade da série, ela foi aprovada por executivos cujo critério é, acima de tudo, lucro.
Então o que isso quer dizer sobre “Andor” e, num nível mais amplo, até sobre o estado atual do capitalismo? Pode uma obra realmente ter algo de revolucionário se ela é considerada segura e lucrativa pelo sistema que ela critica? Temos então um “império” tão seguro de si mesmo e tão confiante na impossibilidade de qualquer tipo de mudança ou revolução que ele se permite financiar obras de aparência revolucionária, e produções como “Andor” são menos uma manifestação artística antissistema e mais uma maneira que o sistema encontrou pra zombar de qualquer ambição nesse sentido?
Colocando a questão em termos que talvez se assemelham mais à outro programa, a série “O Ensaio” de Nathan Fielder: é possível acreditar na sinceridade de uma revolução simulada que está sendo encenada não pelos revolucionários, mas por quem, nessa analogia, provavelmente estaria realizando o papel de Império? Ou mesmo uma revolução simulada, sanitizada e aprovada por altos executivos de um conglomerado capitalista ainda tem algum valor, pelo simples fato de nos lembrar que a ideia de revolução ainda existe, por mais difusa, distante e complexa que ela seja?
Eu, pessoalmente, prefiro acreditar na segunda opção. Que a despeito de qualquer crítica e das óbvias limitações de se contar uma história revolucionária através de canais e espaços não-revolucionários, “Andor” conseguiu realizar o que acredito que tenha sido sua principal proposta narrativa, que é lembrar seus espectadores sobre o poder da esperança. E como a própria série faz questão de deixar claro, é só num mundo com esperança que podemos ter rebeliões - e revoluções.
Bob Dylan, mas sem a guitarra elétrica
Gabriel Trigueiro
João Gilberto sempre foi sambista. A bossa nova, como gênero e movimento musical, é uma espécie de argumento ad hoc. Quer dizer, talvez essa não seja a expressão mais adequada para definir o que eu quero dizer. Calma aí, que eu já vou tentar reformular.
Da mesma forma que a Primeira Guerra Mundial, quando ocorreu, não se chamava Primeira Guerra Mundial, mas apenas Guerra Mundial, ou Grande Guerra, o que João Gilberto tentou fazer em seu disco de estreia, Chega de Saudade, de 1959, era apenas um disco de samba, e não de bossa nova.
Ao gravar Ary Barroso, Dorival Caymmi e Marino Pinto, João Gilberto pensava em si mesmo como um sambista, e sobre aquilo que estava fazendo como samba.
O repertório de inovações formais, no canto mas também no jeito de tocar, é que depois seriam reconhecidos pela crítica como um negócio diferente, esteticamente modernista e original, ainda que derivativo do samba: a tal da bossa nova. Beleza? Beleza.
A minha hipótese, que provavelmente não é original ainda que eu jamais tenha visto alguém formulá-la nesses termos, é a de que o desenvolvimento de gêneros musicais populares guarda alguma semelhança, algum paralelismo, com a evolução dos idiomas modernos. Vou explicar melhor, segura um pouco.
Da mesma forma que o latim é o tronco principal do qual surgem ramificações, as línguas neolatinas como português e francês, por exemplo, no Brasil o samba ocupa o lugar do latim, logo tudo o mais é derivação ou corruptela, assim como nos EUA, por sua vez, o latim é o blues.
Daí sucede que da mesma forma que a medida da riqueza e da complexidade de um idioma é proporcional a quantidade de influências, inflexões e variações que ele sofreu ao longo dos anos, algo semelhante ocorre com um gênero musical.
O samba é uma forma expressiva aglutinadora — ele mesmo é um subproduto da mistura de lundu e maxixe, dentre outros muitos ritmos e gêneros, claro.
Quando você traça uma linha do tempo do samba, logo você percebe duas coisas: 1) o quão heterogêneo ele historicamente sempre foi e 2) que em algum momento, que já dura muito tempo se você quer saber a minha opinião, as inovações estéticas e formais cessaram e o bicho foi arremessado num beco sem saída criativo.
Talvez eu esteja falando besteira, frequentemente estou, mas a minha impressão é a de que os dois últimos grandes surtos criativos do gênero aconteceram primeiro na década de 1980, com a geração do Fundo de Quintal e do Cacique de Ramos, a turma que introduziu novas sonoridades (Almir Guineto inventou o banjo com afinação de cavaquinho, o repique de mão foi criado por Ubirany etc.) e, por fim, na década de 1990, com o pagode e a sua influência do R&B americano e daquela Quiet storm gostosinha, meio JB FM e tal.
A impressão que eu tenho é a de que desde que houve essa última ressurgência do samba no Rio de Janeiro, há coisa de 20 e tantos anos, uma nova geração de jovens se imbuiu de um sentido meio sagrado de missão, um troço sempre perigoso e messiânico, e abraçou a ideia de resgatar o samba. Só não se sabe de onde e para quem.
Quer dizer, faça o exercício de perambular pelas rodas de samba mais conhecidas e faladas no Rio de Janeiro, e você quase acredita que está na Lapa da década de 1950, escutando Candeia.
A cena de samba no Rio de Janeiro é pautada por uma reverência excessiva pelos grandes medalhões do gênero e, como consequência, é conservadora — tende a ser esteticamente medrosa, do ponto de vista formal, e a um certo imobilismo criativo covarde.
É como se todo sambista por aqui fosse um Bob Dylan às avessas, com medo da guitarra elétrica e de qualquer inovação estética que ferisse a ortodoxia da cena folk.
Recentemente li uma entrevista do Wynton Marsalis, feita na década de 1990, pelo Greg Tate. E daí que é muito engraçado ler Marsalis lamentando a decadência da música popular e a ascensão do hip hop, que, para ele, era um sintoma bem concreto e material de uma desconexão espiritual da sociedade com a música devocional das black churches, por um lado, e, por outro, da perda de uma tradição instrumental improvisacional do jazz.
A única coisa pior do que um velho conservador, é gente jovem conservadora.
Sem saber que a missão era impossível, Tom Cruise foi lá e fez
João Luis Jr.
Ainda falando sobre a série “Andor”, porque acredito que por mais uns 15 dias serei uma pessoa insuportável que fala muito sobre a série “Andor”, recebi a recomendação dessa ótima análise sobre a arquitetura na série “Andor” e o que ela representa no universo da série “Andor”. “Andor”, “Andor”, “Andor”. “Andor”.
Outra coisa que já mencionei no texto sobre “Andor” (juro que vou parar agora) foi o retorno d“O Ensaio”, a série semi-documental de Nathan Fielder, que nesta temporada está abordando, da maneira mais perturbadora possível, a questão da segurança na aviação comercial, um tema que não tem absolutamente conexão alguma com a temporada anterior, mas que permite que sejam tratados cenários como “uma simulação de reality show musical que já resultou em processo na vida real”, “uma simulação de amamentação onde um homem adulto se veste de bebê e recebe leite do mamilo de um boneco gigante”, “um homem se masturbando sozinho num avião ao lado de um robô”. Essa entrevista com o próprio Fielder está bem boa também.
Tom Cruise segue firme em sua missão de se matar diante das câmeras para escapar da Cientologia e, mais uma vez, não conseguiu. Mas no processo ele realizou “Missão Impossível - O Acerto Final”, o oitavo filme da franquia que começou em 1996 como um reboot da série clássica de espionagem e agora termina com Ethan Hunt enfrentando o ChatGPT num jogo de truco valendo a espécie humana, numa película tão absurdamente irreal e grandiosa que faz “Velozes e Furiosos” parecer o documentário “Ilha das Flores”, dirigido por Jorge Furtado. O cinema está muito vivo e se ele ameaçar morrer o Tom Cruise vai correndo salvar.
E ainda falando em Tom Cruise, tem este ótimo episódio do podcast “The Big Flop” sobre quando ele demitiu a pessoa responsável pela imagem dele, contratou a própria irmã pro serviço, começou a ser ele mesmo em entrevistas e tudo na carreira desandou, porque aparentemente ele é esquisito pra caramba.
Já numa pegada mais minimalista mas ainda assim muito gostosa, “Black Bag” do Steven Soderbergh é uma grande declaração de amor não apenas ao gênero de espionagem mas também à monogamia. Na história temos Michael Fassbender e Cate Blanchett como um casal de espiões que se vê diante do que pode ser uma situação de infidelidade, venda de informações privilegiadas ou uma conspiração global, apenas para descobrirem que o casamento é na verdade a missão mais perigosa de todas. Espero que passe no SBT com algum título como “00Love, o espião que amava demais”.
Por fim: essa linha do tempo do funk proibidão feita pela Billboard e a Laurinha Lero lendo a biografia da Maíra Cardi.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
65 filmes que o podólatra mais famoso do cinema gostaria que você assistisse.
A propósito disso, como esse negócio pavoroso ainda aparece, ainda que discretamente, na medicina contemporânea.
"uma reverência excessiva pelos grandes medalhões do gênero e, como consequência, é conservadora — tende a ser esteticamente medrosa, do ponto de vista formal, e a um certo imobilismo criativo covarde."
Seria o Sambô a verdadeira vanguarda do samba - nós que não estavamos preparados? ;-)