Tudo bem fazer gaslighting, se você for um sapinho com cartola e bengala, que canta e sapateia
Tem esse desenho de 1955, chamado “One Froggy Evening”, com roteiro de Michael Maltese e direção de Chuck Jones, basicamente o Charlie Kaufman + Spike Jonze da animação dos anos 50. “One Froggy Evening”, aliás, já foi definido por Steven Spielberg como “O Cidadão Kane das animações”.
A história é mais ou menos a seguinte, num dia de tédio qualquer, um operário da construção civil encontra uma caixa com um sapo um cadinho diferente. Sempre que o sujeito está sozinho, o sapo performa um número musical — canta e dança “Hello! Ma Baby”, “I’m Just Wild About Harry” e outros sucessos da Tin Pan Alley.
O lance é que a primeira coisa que o cara resolve fazer é, claro, tentar lucrar com o sapo (que posteriormente seria batizado como Michigan J. Frog). Ocorre que, sempre que tem mais alguma pessoa no ambiente, o bicho finge que é um animal normal, e se recusa a performar os seus números musicais.
A premissa do desenho é parecida com a de “Once Upon a Time”, filme de 1944, dirigido por Alexander Hall, em que Cary Grant encontra uma lagarta dançarina que vive numa caixinha. Chuck Jones, o diretor da animação, tem uma habilidade absurda em construir uma tensão que vai num crescendo maluco: alterna as expectativas e frustrações do sujeito com pequenos esquetes cômicos. Daí chega uma hora em que você não sabe se ri ou se está numa reflexão existencial sobre a natureza humana (que envolve um sapo de cartola? sim, que envolve um sapo de cartola). Coisa fina demais.
Um dado curioso, e se digo “curioso” é porque me falta uma palavra melhor, é que quando Michigan J. Frog dança, ele dança o cakewalk: um ritmo criado pelos escravos americanos nas plantations, para imitar e sacanear o jeito desengonçado e estranho de gente branca dançar. Numa ironia histórica, os brancos copiaram (se apropriaram?) desse ritmo, sem ter noção de que estavam sendo zoados pelos escravos. Ironia trágica ou justiça poética?
Na edição de hoje da Nada de Errado Nisso, Gabriel escreve sobre uma das principais fontes intelectuais do segundo mandato Trump e João Luís sobre como a internet nos faz conhecer demais as pessoas. Se você gosta do que lê aqui, considere um plano pago de assinatura. Dez prata por mês sai na urina, ow, muquirana.
De onde vem o populismo trumpista?
Gabriel Trigueiro
E daí que eu tenho um doutorado em História Comparada. No mestrado, pesquisei a esquerda norte-americana. No doutorado, a direita. Nesse doutorado, eu estudei as origens do movimento conservador nos EUA. E se conto isso, digo sem qualquer bacharelismo, afetação ou tiração de onda. Afinal, como dizia o poeta: “Grandes merdas ser adevogado”.
Compartilho isso apenas porque nesse campo, e exclusivamente nesse campo, historicamente muito bem definido e circunscrito, veja bem, eu posso afirmar sem muito medo de errar que eu sou o craque da rodada. Sério, eu conheço pra caralho essa porra. Tipo, muito mesmo. Adiante.
Desde que Donald Trump regressou ao poder, e com ele o espectro do bolsonarismo, que voltou a rondar com mais confiança e galhardia por aqui, tenho pensado muito num sujeito que ninguém cita no Brasil, e pra ser franco mesmo nos EUA: Samuel Francis.
Antes de qualquer coisa, vamos usar o português claro: o sujeito era racista. Aliás, não apenas racista, mas um dos intelectuais da direita norte-americana que insistiram em racializar a política de modo bem explícito. Francis era um ideólogo supremacista, ao contrário de gente como William Buckley Jr., por exemplo, que construiu sua carreira como editor na National Review condenando em público a ala racista e antissemita da direita, mas que, ao mesmo tempo, não se furtou a usar e abusar de dog whistle no sigilinho.
Mas voltando a Sam Francis, ele era o cara que afirmava que o foco eleitoral e demográfico dos conservadores deveria ser os MARs — Middle American Radicals, basicamente a classe média branca norte-americana, que precisava ser mobilizada politicamente com o trinômio “crime, colapso educacional e a erosão de seu status econômico”.
Francis argumentava que um dos problemas dos conservadores nos EUA era o fato de terem eleito como sua principal influência intelectual Edmund Burke, o parlamentar britânico (irlandês, especificamente) do século 18, autor do grande texto fundacional do pensamento conservador: “Reflexões sobre a Revolução em França”, de 1790, em que ataca a Revolução Francesa e tenta advertir a aristocracia inglesa de seus efeitos maléficos.
É justamente esse o ponto principal e o fundamento da crítica feita por Francis. Para ele, ao dar ouvidos aos escritos de Edmund Burke, os conservadores norte-americanos inadvertidamente não haviam percebido que o alvo de seus lamentos diante da Revolução era a aristocracia britânica, por definição uma elite diminuta em seu próprio país.
Daí, ao elegê-lo como modelo intelectual, de retórica e de ação política, construíram um movimento político elitista: mais preocupado em se comunicar com a classe intelectual e o big business, do que com as classes médias e o operário chão de fábrica.
Se você tem interesse em compreender quais são as bases intelectuais do trumpismo, sobretudo nesse contexto de segundo mandato, uma sugestão de leitura, se você me permite, é o livro “Shots Fired: Sam Francis on America’s Culture War”, uma antologia de textos bem interessante do sujeito. Mais especificamente o ensaio “Populism and the Future of American Politics”, no qual ele toca em temas que, na época, eram anátemas ao movimento conservador, mas hoje formam a espinha dorsal do trumpismo: imigração, políticas tarifárias de protecionismo e aquilo que já chamava na época de “nacionalismo econômico”.
Qualquer um que queira compreender como serão os próximos anos do governo Trump deve voltar a Samuel Francis — um sujeito pouco lido e obscuro mesmo nos EUA, mas responsável por criar um universo político paralelo ao mainstream conservador norte-americano. Tampa o nariz e vai na fé.
Talvez a gente não tenha sido feito pra conhecer tanta gente tanto assim
João Luis Jr.
Por mais que seja uma coisa profundamente repetitiva de ouvir, não deixa de ser verdade o fato de que redes sociais mudaram, de maneira brutal, a forma como interagimos com as pessoas. Se antes você via o bebê do seu amigo quando visitava a casa dele, hoje a criança tem um perfil próprio onde os pais fazem postagens como se fossem a criança. Se em tempos antigos amigos se encontravam pra colocar a conversa em dia, hoje você é criticado por não saber de um evento na vida de um conhecido mesmo ele tendo “postado nos stories”. Se já houve algum dia a figura do “artista recluso”, hoje até mesmo o seu gastroenterologista precisa produzir uma certa quantidade de reels se não quiser ficar fora do mercado.
E ainda que esse acesso à informação possa ter aspectos positivos – mais fotos de bebês adoráveis, mais videos de bichinhos usando roupinhas, jamais imaginei que uma dancinha pudesse me ensinar tanto sobre síndrome do intestino irritável – são também várias as consequências não tão divertidas da mudança de “você vai acompanhar um bocado a vida da sua família, vizinhos e amigos” pra “você vai saber exatamente todas as posições políticas do seu ex-personal trainer e ter acesso a um vídeo da irmã de um amigo seu chorando dentro do carro porque o namorado terminou com ela”.
Existem as relações parassociais, que vão desde níveis saudáveis como se identificar com um artista até níveis nada saudáveis, que incluem achar que ele está realmente cantando pra você ou se sentir no direito de cobrar coisas dele – sem contar toda a falsa intimidade e acesso equivocado que permitem que um popular entre no perfil da Paolla Oliveira pra chamar a atriz de gorda, o tipo de absurdo que se feito ao vivo provavelmente resultaria em algum nível educativo de porrada.
Existe o excesso de informação e exposição, que permite que a gente saiba mais sobre certas pessoas do que a gente jamais gostaria, o que acaba nos levando a processar detalhes demais sobre alguém com quem normalmente teríamos um contato apenas superficial. Ou, seja pelo nosso viés de percepção, seja pela curadoria de conteúdo da pessoa, ter uma percepção equivocada de alguém porque tratamos o que ela posta como uma representação real de quem ela é – existem conteúdos teoricamente inofensivos, mas que podem ser tão especificamente irritantes que você desenvolve pela presença virtual de alguém um ódio que nunca sentiria da presença real.
E por fim existe a simples exaustão. A mesma piada compartilhada 15 vezes vai perdendo a graça, o mesmo vídeo emocionante não vai ter a mesma emoção na 30ª repetição, se você é a favor de uma coisa, mas ela é dita exaustivamente no seu ouvido por 50 pessoas, de maneira cada vez mais enfática e contundente, existe a possibilidade de que um lado seu até comece a ser meio contra. Não se pode negar o poder incontrolável da birra nas nossas vidas.
Então enquanto se fala tanto sobre abandonar certas redes sociais por conta dos seus proprietários – quase sempre para ir pra outra rede social, cujos proprietários possivelmente não são tão melhores, porque, bem, são proprietários de rede social – talvez um outro problema a ser abordado seja a própria dinâmica das redes sociais ou mesmo se o nosso cérebro está preparado pra lidar com tanta informação sobre tanta gente que talvez a gente nem conheça tão bem assim.
Ou isso ou eu apenas fiquei, através dos anos, tão saturado de conteúdo de perfis do tipo “Dude with sign” que comecei a sentir uma vontade real de agredir qualquer pessoa que esteja segurando uma placa de papelão com algo escrito, uma postura que não é nem sensata e nem saudável. Pode bastante ser isso também.
Dente pra lá, dente pra cá, cuidado com o vampiro irlandês que o seu blues quer roubar (?!)
João Luis Jr.
Toda grande história de horror é uma alegoria, mais ou menos complexa, pra uma coisa real da qual nós temos mais ou menos medo. Desde o consumismo que nos deu os zumbis de George Romero até o receio de como criar novas gerações num mundo com mais telas que gerou a bonequinha dançante M3GAN, essas alegorias existem pra oferecer um rosto físico para receios abstratos, permitindo que eles possam então ser combatidos e talvez até mesmo vencidos.
E se o teste maior da qualidade de um grande filme de terror é conseguir transmitir a complexidade da sua alegoria, a veracidade do seu medo, sem perder de vista a capacidade de entreter, Ryan Coogler, em seu primeiro filme de terror, já entrou no rol dos grandes diretores do gênero, não apenas derrubando gente como empurrando vagabundo pra fora da salinha.
Isso porque “Sinners”, o longa de vampiros estrelado por dois Michaels B. Jordans, faz não apenas um trabalho incrível de usar o vampirismo como metáfora pro quanto a cultura - e mais especificamente a música - dos negros norte americanos é sequestrada pela cultura branca dominante, como faz isso de uma maneira narrativamente instigante, visualmente brilhante e com uma trilha sonora do Ludwig Göransson que está basicamente um esculacho, coisa de você ficar batendo pezinho no cinema.
Destaque também pra Miles Caton, brilhante no papel de Sammy, Delroy Lindo que é daqueles coadjuvantes de luxo que agregam a qualquer filme - se não assistiu “Da 5 Bloods”, do Spike Lee, assista, é uma aula de atuação - e Wunmi Mosaku, que vem brilhando muito desde “Lovecraft Country”. É daqueles filmes pra serem vistos no cinema, pra você sentir que tá financiando quem fez, porque vendo depois no streaming sempre fico com receio do dinheiro da assinatura ir pra mais um desses filmes de ação com o Mark Wahlberg batendo em gente na rua.
Já em termos de tela pequena, queria destacar primeiro o retorno de “Andor”, a melhor coisa já feita no universo de Star Wars depois da trilogia original. A segunda temporada voltou tão forte quanto a primeira, Tony Gilroy sabe muito, Diego Luna é um dínamo de carisma e temos aí uma série que não funciona apenas como ficção científica, mas como uma afiada crítica ao fascismo, dessas que te faz sim pensar “será que votar é o bastante ou eu deveria colocar uma bomba na sede do partido Patriotas e sair pela América do Sul?”.
Por fim, estou chegando ao final da terceira temporada de “Yellowjackets”, uma série que começou com imenso hype e foi descarrilhando de maneira incrível, subvertendo as próprias regras, matando quem devia ficar vivo e deixando vivo quem devia morrer, criando uma narrativa absolutamente caótica que deixa em destaque o quão incríveis são as atrizes envolvidas, capazes de trazer algum nível de humanidade para cenas cada vez mais absurdas. Incrível, tenho gostado muito.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Ensaio do Derek Guy sobre a evolução, ao longo dos anos, da estética desses arrombado, da manosphere.
Sobre o conceito de “dismorfia financeira”. Vagabundo gosta de inventar, né.
O disco clássico do show do Elymar Santos no Canecão.
E essa hipótese de que talvez Scott Fitzgerald tenha escrito Jay Gatsby como um personagem negro?
A trilha desse anime, “Lazarus”, do Shinichirō Watanabe, foi composta pelo Kamasi Washington. Linda.
Um perfil da Cat Power, escrito pelo Hilton Als, favorito desta casa.
A produção desse disco é um absurdo. The Alchemist é, nos seus melhores momentos, melhor do que um Madlib, me desculpem os Madlovers.
João Donato tocando o “Quem é quem”.