Anistia só se for pro crime de amar demais
Uma dessas falas que costumam ser atribuídas as pessoas sem grandes comprovações, como aqueles textos da Clarice Lispector e do Luis Fernando Veríssimo, é a suposta antiga maldição chinesa em que se deseja ao outro que ele “viva em tempos interessantes”.
Isso porque, em tese, para esses mesmos chineses antigos, a estabilidade e a placidez seriam o melhor ambiente possível, numa versão um pouco mais poética do “no news is good news” dos americanos, parte da crença de que se não tem nada acontecendo significa que nenhuma desgraça aconteceu.
Se for então verdade, não apenas a fala como também sua origem, é possível afirmar, sem muita hesitação, que não apenas todos nós residimos na China antiga em outra vida, como perturbamos os mesmos anciões, já que, caramba, amigos, que tempos interessantes vivemos, quanta coisa rolando por aí, tudo acontece demais ao mesmo tempo.
Temos Bolsonaro dando discurso sobre pipoca e picolé, temos Trump segurando o que parecia ser uma versão gigante daqueles cardápios de PF da Lapa, temos um final de temporada de White Lotus sem absolutamente nenhum crime cometido por macaco após uma temporada inteira de imagens de macacos que fizeram a gente pensar que ao menos um crime ia ser cometido por macaco e admito que talvez uma dessas coisas seja um pouco menos relevante que as outras, mas a gente aqui realmente tava meio ansioso pra ver algum macaquinho cometendo crime, é muito engraçadinho macaquinho segurando coisas, parecem pessoas peludinhas bem pequenininhas.
Mas se temos aí coisas que não deveriam acontecer acontecendo e coisas que nós queríamos que acontecessem deixando de acontecer, a Nada de Errado Nisso chega na sua 26ª edição como uma coisa que você sabe que vai acontecer e acontece mesmo, num pique de pura inevitabilidade, não adianta você fugir, você soltou o celular a gente vai aparecer no seu notebook, você fechou o navegador nós jogamos uma cópia impressa pela sua janela, você fechou a janela estamos debaixo da sua cama, não adianta se trancar no banheiro que nós estamos agora lendo a newsletter em voz alta pra você do outro lado da porta, você ligou o chuveiro a gente subiu o tom de voz pra você escutar legal. Mas tudo numa boa, tudo como amigo, claro.
E nesta edição temos João dando sugestões de séries solo pra alguns personagens dessa temporada de White Lotus, enquanto Gabriel fala sobre “The Last Showgirl”, de Gia Coppola. Também temos as queridas dicas, porque não basta ver alguma coisa, é preciso convencer os outros a verem também. E acima de tudo temos muito carinho por todos vocês que nos prestigiam quinzenalmente – e se quiserem prestigiar mais ainda, com aquela assinatura paga, a gente vai fingir que não precisa, que isso, sua alegria é a nossa recompensa, a gente fica até ofendido de você falar em dinheiro, mas ok, a gente aceita sim, vamos até colocar um link ali pra isso, obrigado.
Quatro propostas de spin-offs para personagens secundários da terceira temporada de White Lotus que já enviei por e-mail para Mike White mas até agora não obtive resposta alguma
João Luis Jr.
Pornchai: Verdadeiro último romântico dos litorais do Golfo da Tailândia, o personagem interpretado por Dom Hetrakul compõe, junto com Aleksei, os dois extremos emocionais/comerciais do homem no pós-coito, já que enquanto o russo termina o sexo já falando de paypal e passando o número do pix, o funcionário do resort precisou de apenas uma noite de prazer pra querer abrir um CNPJ em sociedade. E é exatamente essa postura “grandes amores, pequenos negócios” que gera não apenas a possibilidade de explorar novas aventuras de Pornchai – imagine um homem pra quem cada date é uma potencial mudança de carreira, cada beijinho é um reposicionamento comercial – como também um possível prequel, onde descobrimos que ele na verdade nem queria ser massagista, apenas saiu uma vez com uma moça que fazia massagem e se empolgou um pouco demais.
Fabian: Uma maneira simples de tornar mais rica a trama do gerente do hotel, interpretado pelo ator alemão Christian Friedel é imaginar que ele é na verdade outro personagem também interpretado por Friedel, o comandante nazista Rudolf Hoss, do filme “Zona de Interesse”. A hesitação em se apresentar na frente de todos? Medo de ser descoberto como um criminoso de guerra. A insistência em não envolver a polícia diante das suspeitas de Belinda quanto a Gary? Medo de ser descoberto como um criminoso de guerra. A decisão de manter Gaitok como segurança mesmo ele abandonando a guarita diante de qualquer pretexto e sendo absolutamente incapaz de proteger até a si mesmo? Aí já seria incompetência mesmo, péssimo gerente. E sim, teríamos elementos de ficção científica pra justificar um homem que nasceu em 1901 parecer ter 46 anos em 2025, assim como longos números musicais que seriam ignorados por todos, fazendo com que Fabian/Rudolf cogitasse retornar aos seus dias de nazismo apenas por irritação.
Kenny: Um personagem pouquíssimo presente, participando apenas de uma cena, através de áudio, a intensa energia da voz de Ke Huy Quan poderia ser aproveitada em uma série de podcasts onde ele, de maneira maníaca e aterrorizada, transmite notícias cada vez mais terríveis para pessoas de férias em ambientes cada vez mais relaxantes. Resort na Tailândia? Descobriram nossa fraude e vamos ser presos. Lua de mel na Europa? Sua casa pegou fogo. Fim de semana tranquilo em casa? Você perdeu o emprego. Você finalmente está conseguindo ter 8 horas de sono após uma semana corrida? Ele não sabe como te explicar, mas apareceu na home do Globo o link pra um HD virtual com 6 terabytes de fotos suas pelado, sem senha, só acessar.
Pam: Uma mulher com apenas uma missão, a funcionária de resort interpretada por Morgana O'Reilly queria apenas e tão somente que os Ratliff colocassem seus celulares e demais dispositivos eletrônicos dentro da bolsinha pra que ela pudesse guardar a bolsinha. Mas e se isso não fosse apenas seu trabalho e sim algo mais pessoal? E se tivéssemos uma história de origem para Pam explicando como e por que aumentar a distância entre as pessoas e seus eletrônicos de tornou seu principal objetivo de vida? Seria ela mesma uma bilionária que perdeu todo o dinheiro em apostas? Uma herdeira seduzida por um vigarista em um aplicativo de namoro? Uma pessoa que foi iludida pelos cupons de desconto do site Temu e quando viu as taxas de importação percebeu que todas aquelas tralhas, incluindo a minhoca com cara de The Rock, iriam custar quase mil reais, mas talvez fosse longe demais pra recuar, era só dar enter? Porque sinceramente, não posso ter sido só eu que vivi isso, precisa ser uma experiência universal.
Gia Coppola dirigiu uma pequena obra prima e se você não tiver um pacote de Trakinas sabor limão no lugar daquilo que alguns chamam de “coração”, esse filme é pra você
Gabriel Trigueiro
Sim, claro, mas primeiramente: quem diabos é Gia Coppola? Essa é a pergunta que talvez você esteja se fazendo nesse momento, se por acaso for uma pessoa normal, e não um filho(a) da puta de tote bag da MUBI. A melhor forma de te responder sobre a Gia (olha a intimidade), é situá-la na árvore genealógica da famiglia. Não tem a Sofia Coppola? Pois então, ela é sobrinha. Não tem o Francis Ford Coppola? Perfeito, ela é neta.
E daí que “The Last Showgirl”, seu terceiro longa na direção, é um filme com roteiro de Kate Gersten, adaptado de uma peça da própria Gersten, e que ficou hypado no ano passado como “o comeback da Pamela Anderson”. Além disso, tratorou um tanto de prêmios e indicações em festivais internacionais. Assisti só agora, e não apenas compreendi o hype como acho que ele não foi compatível com o tamanho da obra: merecia mais.
A história resumida é a seguinte: a protagonista é Shelly, interpretada por Anderson, uma dançarina de 57 anos que vive e trabalha em Las Vegas, e que dedicou sua vida à companhia em que atua, às custas de sua relação com a filha, Hannah Gardner, vivida por Billie Lourd.
No início do filme Shelly é avisada sobre o fim iminente da Le Razzle Dazzle, a tal da companhia de dança em que trabalha. Embora a Dazzle seja um negócio kitsch e meio anacrônico, Shelly a trata como arte: com seriedade e comprometimento. Identifica suas raízes nos espetáculos de balé e cabaré do Lido parisiense.
“The Last Showgirl” tem o charme único da Era de Ouro de Hollywood. A trilha sonora, assinada por Andrew Wyatt, evoca a atmosfera elegante, suntuosa e melancólica da época. A direção de elenco é precisa e cuidadosa: a galera old school, gente como Pamela Anderson e Jamie Lee Curtis (que é tipo a BFF mais velha da personagem de Anderson), atuam sempre dois tons acima, como se fossem estrelas de um período glamuroso, mas esquecido, do showbiz.
Aliás, uma das cenas mais bonitas e tristes do filme é Jamie Lee Curtis dançando “Total Eclipse Of The Heart”, para absolutamente ninguém. Ou melhor, para clientes que vão e vêm, e riem incrédulos com seus movimentos desajeitados.
O filme de Gia Coppola é uma história sobre o crepúsculo de uma arte que não é levada a sério, observado por alguém que a ama. Os gringos chamaram “The Last Showgirl” de “dreamy and melancholy”, os mesmos adjetivos que usavam para se referir à filmografia da Sofia Coppola, desde “As Virgens Suicidas”. É uma forma boba e preguiçosa de classificar alguém que já tem tanto a oferecer.
Quando o homem que estão tratando como velho no filme é coisa de uns cinco anos mais novo que você
João Luis Jr.
Já tinha visto “Crossing Delancey” (ou “Amor à segunda vista” em pt-br) em diversas listas das melhores comédias românticas de todos os tempos, mas foi só depois de ler um artigo sobre a carreira da Joan Micklin Silver, que acabei decidindo conferir esse filme sobre uma mulher independente e do meio literário que, absolutamente contra a sua vontade, acaba se apaixonando por um fabricante de picles que mora perto da avó dela. Uma premissa 100% comédia romântica com uma execução brilhante, atores talentosos e pessoas com dentes normais sem clareamento e sem capa, como ainda acontecia nos anos 80.
Fiquei fascinado com esse artigo da New Yorker sobre o Alexandre de Moraes, não apenas porque o repórter parece claramente ter se apaixonado pelo juiz do supremo durante a produção da matéria – (“He is, however, conspicuously fit; he runs, lifts weights, and spars with a Muay Thai partner several times a week. At fifty-six, he has a shaved head and a face that seems made for cross-examination, with a heavy brow, sharp cheekbones, and a jutting chin. He stares without appearing to care whether he’s being rude”) – mas por esse momento em que é dito que a Tabata Amaral é conhecida como “Xandão de saia”, uma coisa que acredito que nenhum de nós viu ela sendo chamada, mas talvez seja um apelido que ela está tentando fazer pegar. Mas até aí também, quem nunca, se tem o cara do Black Eyed Peas que chama William e assina Will.I.Am acho que tudo tá valendo.
Também li essa longa história sobre um trágico incidente durante uma competição de balões na Bielorússia, que envolve desde geopolítica até mortes e sinceramente não faço a menor ideia de como cheguei nele, mas é uma leitura instigante.
Por fim, acabei de chegar na metade da última temporada de “What we do in the shadows” e realmente é uma das grandes comédias já feitas na televisão mundial, das coisas mais especiais que vi recentemente e fico feliz que está encerrando ainda em altíssimo nível e aparentemente da maneira que os criadores gostariam.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Fran Lebowitz pensando, falando e respirando. Na mesma época em que eu e você.
Parker Posey e as origens do seu sotaque sulista em White Lotus.
Aparentemente há a possibilidade de que “O Crítico”, a melhor animação cult (sim, estou trazendo de volta à vida o termo cult) da década de 1990, finalmente ganhe uma terceira temporada.
Se tiver que abrir apenas um link, que seja este. Pauline Kael, autora favorita desta casa, é gênia de um jeito sexy, bonito e muito particular. Atenção para o momento em que ela dá uma enquadrada forte no entrevistador.
Este disco. Só quem viveu sabe.
De todas essas bibliotecas dessa série de vídeos do Estadão, a única que me interessou e despertou uma pontinha de inveja foi a do Ignácio de Loyola Brandão.
Muito fofa esta entrevista com a Claudette Robinson.