Ninguém solta a Skol Beats de ninguém
Mikhail Mikháilovitch Bakhtin nasceu em Oriol, em 1895 e morreu em Moscou, 1975, sem ter tido, em tese, a oportunidade de pegar um Boi Tolo, sem ver um Amigos da Onça, sem ir parar alcoolizado em Santa Teresa, e são grandes as chances de que ele sequer tenha, durante toda a extensão da sua vida, trocado uma mísera mensagem perguntando “onde vocês tão? eu tô aqui perto dos músicos” num grupo de Whatsapp com algum nome do tipo “Carnaval 1921” ou semelhantes.
Mas ainda assim ele identificou, no fenômeno da carnavalização, “o rito das inversões e transgressões simbólicas, no qual os pares antinômicos – superior/inferior, sublime/vagabundo, erudito/popular, clássico/grotesco – são desconstruídos e reconstruídos, obedecendo a uma lógica de “um mundo ao avesso”. Ou seja, o carnaval, tanto na teoria quanto na prática, é sim o momento da inversão de valores, do caos, do subversivo, de uma flexibilização moral, de uma chicomoedização da alma.
Então se durante os últimos quinze dias você tomou atitudes que não tomaria normalmente, se cometeu vacilos que não são do seu feitio, se misturou cerveja com xeque-mate e skol beats vermelha, se reclamou com seu amigo que só tinha gente feia no bloco e descobriu que não só aquele não era seu amigo como você não estava num bloco e sim numa reunião de condomínio, se escreveu um textão sobre como a Mikey Madison não merecia o Oscar sem nem mesmo ter visto “Anora”, a gente está aqui pra te dizer que ok, realmente não foi o ideal, sua síndica provavelmente ainda está chateada, convém uma profunda reflexão pro ano que vem, mas o que além disso seria o espírito do carnaval?
E é com os restos de fantasia ainda espalhados pela sala e um pouco de glitter grudado no bumbum que a “Nada de Errado Nisso” está chegando até você nessa sexta-feira. Gabriel puxa o bloco do “Joga pro coroa, porra” falando sobre “Sing Sing” e a atemporalidade da grande arte (ui!), enquanto João entra armado na apuração, rasga os envelopes com as notas e fala sobre situações dramáticas que ocorreram recentemente na copa da empresa onde ele trabalha. Recebendo mensagens desencontradas sobre um suposto bloco secreto também estão as nossas dicas da quinzena, devidamente sob efeito de md, loló e brahma em temperatura ambiente.
Por fim, se você quer financiar os reparos da fantasia de árabe do Largo do Machado do Gabriel ou garantir um Uber pra que o João não volte mais correndo de Santa Teresa como fez esse ano, te convidamos a realizar uma assinatura premium e assim financiar esse carinhoso baile de conteúdos que estamos trazendo quinzenalmente para vocês. Pronto, sem analogia com carnaval por pelo menos um ano agora, a gente promete.
Algumas breves cenas de tragédia humana testemunhadas na copa da firma
João Luis Jr.
Uma das situações mais angustiantes que um ser humano pode viver é tentar encontrar uma boa desculpa para inviabilizar algum tipo de evento/combinado/projeto e se deparar com um interlocutor que, violando todas as regras básicas do convívio social, começa a apresentar todo tipo de solução para que esse evento/combinado/projeto se realize. Uma pessoa fala que não pode porque está sem dinheiro, a outra responde que ela paga, a primeira fala que não dá porque vai estar com parente visitando, a segunda diz que pode levar a visita, aí ela diz que o carro quebrou e ouve como resposta um “tudo bem, eu te busco em casa, eu tenho uma van”, e aí num dado momento a pessoa recorreu desesperada a um “é que eu acho que estou ficando doente” e deixou no ar um silêncio tão pesado que quando a outra soltou “meu cunhado vai estar lá e ele é médico” eu e mais duas senhoras que estávamos perto do bebedouro morremos sim um pouquinho por dentro.
Ele chegou na copa e falou “Pedrô Albérto sxhiwinwin” fazendo o sonzinho de chicote da vinheta do Beto Carrero e o que veio depois foi apenas tragédia. Porque ele riu, mas o Pedro Alberto não riu. E por que o Pedro Alberto não riu? Porque o Pedro Alberto não tinha entendido a piada, o Pedro Alberto não tinha pego a referência, o Pedro Alberto apenas presenciou um colega de trabalho dizendo o nome dele (“Pedro Alberto”) seguido de um som incompreensível (“sxhiwinwin”). E aí o Pedro Alberto perguntou “como assim?” e ele teve que responder que estava imitando a vinheta do Beto Carrero e ele precisou contextualizar pro Pedro Alberto quem era Beto Carrero e aí ele precisou tirar o celular do bolso pra procurar no Youtube alguma gravação da vinheta do Beto Carrero e o 5G na copa é muito ruim, então o processo foi demorado e tortuoso e aí começava a vinheta e parava antes da hora do chicote (“sxhiwinwin”) e ele precisava tocar tudo de novo porque só fazia sentido a vinheta inteira e aí o Pedro Alberto finalmente ouviu a vinheta toda e entendeu a referência e parecia haver um certo alívio. Mas aí o Pedro Alberto perguntou “mas por que falar meu nome assim? eu nem tenho cavalo” e ficou evidente que as coisas ainda iriam piorar bastante antes de ficarem boas.
Na teoria o processo é simples. Você pega o produto no estande aí passa na leitora de código de barras, paga com seu cartão e está tudo resolvido. Porém como informa a sabedoria popular, na prática a teoria é outra, e já foi possível presenciar todo tipo de alteração operacional, desde a simples inversão (tentar ler a máquina com o produto) até o mais ousado retrofuturismo (tentar colocar uma cédula de dinheiro dentro da máquina). Nesse dia os problemas começaram já nas premissas do projeto: o homem não entendia direito onde era a leitora, começou a passar o produto na lateral na máquina de café. Alguém apontou pra direção da leitora, ele entendeu onde era a leitora, pegou o produto e tentou passar na leitora. Mas não na parte certa da leitora. Aí alguém mostrou a parte certa da leitora. Aí ele começou a passar a parte errada do produto. Falaram que era o código de barra e aí ele deu aquele sorriso de “kkkkk claro que era o código de barra” mas ainda assim não passava e todo mundo pensou “que burro, não consegue passar um código de barra” e aí uma pessoa foi lá passar pra ele e não conseguiu passar o código de barra e outra pessoa foi depois e também não conseguiu passar o código de barra e talvez não estivesse lendo o código de barra. Mas na teoria o processo é simples.
Joga pro coroa, porra
Gabriel Trigueiro
Assisti a “Sing Sing”, o filme de 2023 dirigido e escrito por Greg Kwedar, e corroteirizado por Clint Bentley, sobre o papel da RTA (Rehabilitation Through the Arts), um programa que existe na vida real, e que atua no processo de reabilitação e ressocialização de detentos na penitenciária de segurança máxima Sing Sing, em Ossining, Nova York.
A RTA surgiu na década de 1990, e funciona mais ou menos como um conjunto de workshops e oficinas de escrita criativa, artes plásticas, música, dança, montagem de peças de teatro etc. Enfim, é uma iniciativa baseada na ideia de que a arte tem um papel emancipatório fundamental na existência do indivíduo, e que ela é capaz de restaurar a humanidade e a inteireza daqueles que foram abandonados à própria sorte ao longo da vida.
Dá para falar sobre um monte de coisas do filme: da atuação cheia de páthos de Clarence Maclin, e de como a direção de atores é tão habilidosa que nos faz lembrar os melhores momentos do neorrealismo italiano; até a opção estética de contar uma história filmada em 16mm, com o uso quase integral de iluminação natural num drama prisional — um gênero naturalmente claustrofóbico, mas desta vez filmado de um jeito paradoxalmente solar e aberto à natureza do mundo externo.
Mas o que mais me chamou a atenção em “Sing Sing” foi a ideia, a um só tempo conservadora e revolucionária, de que a arte tem, e precisa ter sempre, uma certa dimensão moral e transcendente.
Essa é uma perspectiva que vai na direção oposta à ideia defendida pelos estetas e formalistas, de que a mera criação de beleza já se justifica em si mesma, e da galera que Harold Bloom chamava de “a Escola do Ressentimento”, que interpreta uma obra de arte invariavelmente a partir da sua intenção política, ou seja, de méritos extra-estéticos.
Em “Sing Sing” um solilóquio de Shakespeare pode literalmente salvar uma vida. Esse é um aspecto interessante da coisa, porque a nossa sensibilidade contemporânea é meio que uma mistura de condescendência e cinismo: gera a suposição boba de que uma peça escrita na Inglaterra elisabetana não teria absolutamente nada a ver com a realidade de um detento negro, com pouco letramento e educação formal.
O que nos esquecemos, ou fingimos esquecer, é o fato de que Shakespeare sempre escreveu peças populares: peças essas que durante muito tempo foram julgadas como vulgares e amorais. Não custa lembrar das críticas de Leon Tolstói a respeito.
Ao mesmo tempo, a ideia de que há algo como uma natureza humana, ou de que existam determinadas constantes universais e atemporais no comportamento e no espírito humano, não é um negócio muito bem visto ou aceito pela intelligentsia contemporânea.
Se bobear, tá na hora da gente tentar aprender um pouco mais com os antigos.
Aí sim, fomos surpreendidos novamente
João Luis Jr.
Fazer um bom plot twist é um lance complicado, porque você precisa ao mesmo tempo oferecer ao público uma surpresa, uma descoberta, mas fazer isso de forma honesta, sem que ninguém se sinta roubado, garantindo uma reviravolta que ele não descobriria sozinho mas fazendo com que ele sinta que não foi negada a ele nenhuma das peças pra que ele realizasse essa descoberta. Não é fácil, pouca gente consegue, muita gente morre tentando, mas se tem um homem que sabe fazer isso com elegância é o amigo Park Chan-wook. E em “A Criada” ele não só faz uma trama instigante e cheia de reviravoltas como faz de uma maneira tão visualmente bonita e bem construída que mesmo se a trama não fosse tão boa você não iria notar. Mas ela é, então parabéns pra todos os envolvidos.
Mantendo a pegada de “Edição Especial Coreia” das dicas, fui ao cinema ver “Mickey 17”, do Bong Joon Ho e estou extremamente feliz com o fato de que o homem decidiu usar todo o capital obtido com os 4 Oscars do filme “Parasita” para realizar uma comédia de ficção científica onde, em ao menos 3 cenas, Robert Pattinson interage com um ator fantasiado de pombo. O filme mistura críticas ao capitalismo, às religiões, ao colonialismo e ao governo Trump, mas também tem gente tomando tombo, bicho fofinho, consumo de drogas e um cara questionando se é ok participar de um ménage que envolve outra versão dele mesmo, tudo isso numa vibe muito gostosamente Sessão da Tarde em que uma galerinha do barulho apronta todas em clima de muita azaração num futuro distópico. Não apenas muito alegre com o filme como alegre por ele existir e espero que mais maluquices assim sejam feitas.
Por sinal essa entrevista do Bongão do Valqueire (como chamo mentalmente o cineasta Bong Joon Ho) pro The Guardian está bem divertida, ele falando que inveja a energia dos cineastas mais velhos porque ele estão lá fazendo filmes e ele só quer cochilar.
Por fim, pra quem não entendeu direito aquele musical do 007 no Oscar, a galera estava meio que fazendo uma eulogia da franquia, já que ela agora foi comprada pela Amazon, os Broccoli – a família que é responsável pelos filmes desde o começo dos tempos – foram embora, e nada mais será como antes. Teremos uma série “Jovem James Bond” mostrando a adolescência do 007? Moneypenny terá seus próprios filmes? Christopher Nolan, o cineasta que adora matar esposas terá uma chance de dirigir um filme do espião que usa mulheres como escudo humano? Esse artigo fala um pouco sobre todas essas mudanças e como Jeff Bezos basicamente pode comprar qualquer franquia que ele quiser pra fazer o que ele quiser do jeito que ele quiser. “Normar, tudo normar”, como diria o Chico Bento.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Pequeno doc de 1978, do Leon Hirszman, sobre o carnaval carioca. Bonito pra chuchu.
Entrevista com Pelagia Kolotouros, a diretora criativa da Lacoste.
Como músicos negros influenciaram o punk.
Baita mesa redonda sobre dandismo negro. Sério, tá o fino da bossa.