Nada de Errado Nisso #2
Só agradece
Há duas semanas lançamos a Nada de Errado Nisso e, é preciso dizer com toda a transparência e honestidade, foi um sucesso. Nada mais, nada menos.
Vocês leitores abraçaram forte a iniciativa e daqui, de nossa parte, foi bonito perceber a quantidade de gente disposta e interessada em ler textos longos, sobre temas muitas vezes específicos demais, recheados de piadas e refs herméticas, um cadinho obscuras até.
Sim, esse início de projeto tem sido uma aventura intelectualmente muito interessante e das mais divertidas e crocantes. Então, primeiramente e com todo o respeito, obrigado demais pela leitura e pela companhia, tropinha.
Nossa newsletter é escrita a partir do ponto de vista de dois homens negros que tiveram uma trajetória acidentada de letramento racial e que se reconheceram como negros já adultos.
Por isso não estranhe a presença de referências culturalmente brancas, um bocado brancas, como Weezer, Jane Austen, os filmes de Whit Stillman e Phil Collins. Sobretudo Phil Collins. São universos estéticos que fazem parte de quem somos e que informam a nossa sensibilidade intelectual tanto quanto Jorge Ben, Alcione, Mateus Aleluia ou um domingo com rabada e pagode.
O fato é que autoconsciência racial jamais deve ser algum tipo de prisão cognitiva ou de autocensura, mas é algo que servirá sempre para nos lembrar daquela fala de Chris Rock: “Eu adoraria trabalhar com Wes Anderson, mas infelizmente não me pareço com o Owen Wilson”.
Nesta edição, a propósito, Gabriel Trigueiro discute as raízes brancas do true crime e João Luís escreve sobre a experiência universal do pé na bunda.
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Até porque, tropa, como dizia o outro, the best is yet to come.
True Crime: um gênero pra lá de branco
Gabriel Trigueiro
Uma das minhas memórias mais antigas é a de assistir à MTV nos anos 1990 e de ficar surpreso com Axl Rose e aquela sua camiseta clássica, com a cara do Charles Manson desavergonhadamente estampada na barriga.
Jamais ficou claro pra mim se aquilo era um comentário crítico sobre o circo midiático norte-americano, armado de quando em quando a partir de episódios-chave de violência, ou algum tipo de estetização moralmente problemática de um assassino serial.
A sociedade civil nos EUA sempre foi meio totó das ideias e com frequência tem a incômoda tendência de espetacularizar violência e transformá-la em entretenimento de massas. É um hábito antigo e renitente.
Esse traço de psicologia social, ou da cultura nacional mais ampla, não começou ontem, é bem verdade. Mas foi com o fenômeno do true crime (seja em podcasts, livros ou documentários) que o negócio explodiu e foi alçado à uma espécie de menina dos olhos do zeitgeist norte-americano.
Nesse sentido, é muito boa esta entrevista aqui de Jean Murley, estudiosa do gênero, professora do Departamento de Inglês do Queensborough Community College. Segundo ela, muitas vezes um aspecto invisível aos olhos de quem cria esse tipo de entretenimento é o grau de impacto, subjetivo e concreto (às vezes concreto demais, concreto pra caralho), da transformação de uma tragédia pessoal em storytelling, para os sobreviventes e mesmo para a família de quem foi assassinado.
É claro que uma forma de interpretar o fenômeno, e certamente muita gente argumenta dessa forma, é ler o true crime como um modo de honrar a memória da vítima.
Quase como uma eulogia, uma homenagem póstuma. Muitos também leem como uma cautionary tale moral: uma advertência sobre o Mal, assim mesmo com maiúscula, que está sempre à espreita lá fora, pronto a atacar e macular mais uma vítima.
O que nos leva à convenção de gênero mais importante do troço. O perfil da vítima é invariavelmente o mesmo: uma donzela branca, bela e virginal.
Segundo Jean Murley, o antecedente histórico dessas narrativas foram as chamadas “narrativas de cativeiro” — histórias que tinham ampla circulação nas colônias inglesas, ainda durante o século 18, sobretudo na região que hoje é a Nova Inglaterra e o Nordeste dos EUA, e que contavam sempre variações sobre o mesmo tema: o sequestro, seguido de morte ou ainda pior a aculturação, de alguma colona jovem e branca por nativos-americanos.
Não à toa um dos filmes fundacionais do cinema norte-americano é “Rastros de Ódio”, de John Ford, que fala rigorosamente sobre esse negócio.
Esse mesmo imaginário foi alimentado, com uma adaptação aqui e outra acolá, em “O Nascimento de uma Nação”, filme no qual dessa vez não são os índigenas, mas sim os negros, mostrados como predadores sexuais violentos à espreita de qualquer southern belle que desse mole sozinha na esquina.
Hoje em dia, no entanto, na maior parte dos podcasts de true crime a vítima é uma mulher jovem, atraente e branca mas o assassino é igualmente branco. Como Murley argumenta:
(...) essa é América branca contando a si mesma uma história de perigo, violência e feminilidade, quando na verdade as maiores vítimas de homicídio no país são jovens negros – cujas histórias não são contadas, diga-se de passagem. São histórias ignoradas e minimizadas: “Ah, foram as drogas, o crime, as gangues, a violência urbana etc”. Mas aí basta uma mulher branca desaparecer e é um estardalhaço. Veja bem, eu não quero dar a impressão de que essas histórias não são importantes, mas quando você observa de perto e com cuidado, é inegável que o true crime é um gênero branco.
O negócio é que, como sabemos, qualquer mudança ou inflexão que ocorra na política é antecedida por uma mudança ou inflexão na cultura.
Nesse sentido, a ênfase desproporcional naquilo que a jornalista negra norte-americana Gwen Ifill uma vez chamou de “A Síndrome da Mulher Branca Desaparecida” gera distorções bem reais e concretas: de incentivos a políticas penais de lei e ordem, com caráter essencialmente punitivista, passando por vigilantismo local à alocação de recursos desequilibrada em áreas demograficamente brancas.
A obsessão com true crime “infla a percepção pública sobre as taxas nacionais de criminalidade” e pode deixar a sociedade civil mais permeável a discursos, agendas e plataformas reacionárias e punitivistas que quase sempre impactam desproporcionalmente jovens negros com o de sempre: violência policial e encarceramento em massa.
Além disso, “A Síndrome da Mulher Branca Desaparecida” contribui para apagar um problema endêmico dos EUA e historicamente sempre ignorado: o desaparecimento e assassinato de mulheres indígenas. Taí essa quarta temporada de True Detective que não me deixa mentir.
Aliás, este artigo aqui é uma amostra sensível e nuançada de como o true crime é um gênero capaz de transformar tragédias pessoais em commodities capazes de borrar, ou às vezes extinguir por completo, qualquer fronteira que havia até então entre aquilo que é público e privado.
Minha ideia aqui passa longe, claro, de querer fazer uma cruzada moralista contra o gênero. Meu argumento parte de uma ideia muito mais simples, objetiva e modesta: ao compreender as raízes históricas racialmente problemáticas do bicho, e o porquê de suas convenções de gênero etc., nosso consumo se torna mais crítico, qualificado e cuidadoso.
Mal não faz, né.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Não me canso de escutar esta antologia aqui de soul britânico underground (perdão sempre):
A compilação de artistas e canções foi feita pelo Sam Don, DJ e curador brabíssimo que você deveria conhecer, se é que ainda não é o caso.
Tá no ar na Netflix o “The Vince Staples Show” — uma minissérie de cinco episódios na qual Vince Staples interpreta uma versão ficcionalizada de si mesmo. A comparação com “Atlanta” é meio preguiçosa, mas não deixa de ser verdadeira. “The Vince Staples Show” tem a mesma pegada de humor surrealista de “Atlanta” e discute tópicos raciais com a mesma destreza. Sinceramente espero que seja renovada para uma segunda temporada.
Hiroshi Nagai é um dos meus artistas contemporâneos favoritos. O sujeito é designer, ilustrador, pintor, capista: joga nas onze. Conheci sua obra através das capas de discos clássicos de City Pop, sempre com sua marca característica: paisagens tropicais, piscinas, palmeiras, carros e motos vintage, tons pasteis etc. Dá uma olhadela aqui porque este link contextualiza sua obra e dá a perspectiva do tamanho e da influência dela em artistas japoneses da nova geração.
Este perfil aqui, publicado ano passado no NYT mas que só agora tive a oportunidade de ler por indicação de meu tropa Leandro Sarmatz, da Aimé Leon Dore (e de Teddy Santis, seu fundador): uma das grifes mais interessantes a surgir nos últimos anos em Nova York, responsável por misturar elementos de luxo e estética preppy ao streetwear historicamente associado à cultura hip-hop norte-americana. Texto escrito pelo grande Jon Caramanica. Tá o fino da bossa, vai lá.
5 dicas para você homem hétero aproveitar ao máximo a experiência de levar um pé na bunda
João Luis Jr
Não finja que foi você que terminou: seja por necessidade de controle, seja por problemas de autoestima, seja pela incapacidade de lidar com a própria fragilidade e se compreender como vulnerável, é muito comum topar com homens que apenas não conseguem aceitar que um relacionamento terminou contra a sua vontade.
São reações imaturas e até mesmo violentas, são estágios profundos de negação, são as mais variadas e absurdas manobras retóricas apenas pra tentar acreditar que “não, não foi você que terminou, fui eu, mesmo que eu tenha feito isso tapando as orelhas e começando a gritar EU TERMINEI EU TERMINEI EU TERMINEI assim que você sentou na minha frente e disse que queria ter uma conversa séria”.
Então diante de uma dessas rescisões unilaterais do contrato emocional que a vida coloca no seu caminho, não sinta a menor vergonha de admitir a realidade de que nesse caso era você que queria continuar. Términos não são uma competição pra se ganhar ou perder, aceitar seus sentimentos é o primeiro passo para lidar com eles e não é se ausentando da realidade que você vai superar seus problemas. Ou pelo menos foi isso que a terapeuta disse quando eu falei que não sabia de que término ela estava falando, já que eu era um astronauta e meu único relacionamento era com “a conquista do espaço” e o espaço jamais iria embora me deixando sozinho naquele apartamento.
Use o capital emocional gerado pela situação: outra ótima razão para sempre reconhecer a realidade de ser o terminado e não o terminante, é tentar aproveitar ao máximo o capital emocional e até social gerado pela situação, já que nossa sociedade tem sim uma tolerância e paciência especial com as pessoas que não estão com sorte no jogo, acharam que iam ter sorte no amor, descobriram que o amor tem patrocínio Pixbet.
Vacilou no trabalho? Se defenda dizendo que está complicado focar porque só pensa no seu término. Errando tudo no futebol? “Como acertar um passe com o coração em descompasso???”. Perdeu o prazo pra pagar o IPTU com desconto? Chega no guichê da prefeitura e fala que você já está pagando o maior imposto de todos, que é a solidão (não importa se você tá com IPTU irregular desde 2022 e ela só foi embora em 2024, o importante é tentar).
Exponha seus sentimentos: se você é um homem heterossexual cis e a coisa toda, grandes são as chances de que você venha de uma longa linhagem masculina de constipação emocional, com pessoas que não conseguem manifestar um sentimento, falar abertamente sobre uma dor, compartilhar um mínimo do que existe de sofrimento interno machucando você diariamente.
Nada melhor então do que aproveitar a oportunidade para quebrar esse ciclo da maneira mais intensa, exaustiva e desgastante o possível para as pessoas que estão ao seu redor. Está triste? Diga que está triste. Não vai conseguir fazer uma coisa porque tem dois dias que não levanta do chão de sinteco da sua sala, onde vem se alimentando de sucrilhos puro enquanto amassa entre seus dedos uma polaroid antiga de vocês dois? Responda exatamente assim no grupo do trabalho. Não sabe se algum dia vai amar novamente porque se sente absolutamente destituído de qualquer valor como ser humano após oferecer o que você imaginava ser a sua melhor versão e descobrir que não conseguiu agradar quem mais importava? É isso que você vai dizer pro atendente do Subway quando ele perguntar se você quer o pão de 15 ou 30cm e o pessoal da fila que se foda, sinceramente. Gente egoísta do caralho. “Ai, eu quero meu sanduíche, eu quero meu sanduíche”.
Não fale mal da sua ex: outro grande clichê masculino em situação de término é famigerada história da “ex-maluca”, uma tentativa de demonizar a antiga parceira e justificar para outros homens qualquer decisão mais questionável que você tiver tomado, seja durante o término, seja no decorrer da relação.
E ainda que obviamente algumas pessoas possam sim ter se relacionado com alguém que se comportava de maneiras antiéticas, cruéis ou até mesmo violentas, a verdade é que com uma certa frequência essas reclamações sobre ex giram mais em torno da famosa miopia de primeira pessoa (“não fez o que eu queria, então é uma pessoa ruim”), ou daquele rancorzinho que pode surgir após um término mal digerido.
Então por mais tentadora que possa parecer a oportunidade de falar mal de quem te dispensou ou por mais irritante que seja não ter nem o que falar mal de quem decidiu ir embora (“não, ela não apenas terminou comigo de uma forma muito gentil como, depois que ela explicou, até eu terminaria comigo também, embasada demais, não tem jeito, ali foi elite dos términos”) vale dar aquela refletida, uma respirada funda e não sair aí se comportando se sua relação fosse a eleição de 2014 e você o Aécio Neves.
Ouça “Against All Odds”, original do Phil Collins: Existem várias, inúmeras, é possível até mesmo dizer que quase infinitas músicas de término. Existem músicas pra quando você quer terminar e ela não, pra quando ela quer terminar e você não, pra quando ela tem razão, pra quando você tem razão, pra quando você foi traído, pra quando você traiu, e até mesmo músicas pra quando você tentou trair através de um anúncio de jornal mas a pessoa com quem você queria trair era a pessoa que você estava traindo e aí ficou tudo bem. Em suma, tem bastante música.
Mas poucas conseguem encapsular de maneira tão dramática, dolorosa e absolutamente triste o que é a experiência masculina do pé na bunda quanto esse gesto de terrorismo psicológico cometido pelo artista Phil Collins pra trilha sonora de um filme do Jeff Bridges que pouca gente viu.
Está tudo ali. O pedido desesperado por atenção mesmo diante da consciência de que as chances de sucesso são baixas, a profunda sensação de vazio, a percepção de que a cada “TAKE A LOOK AT ME NOOOOOW” cantado enquanto lava louça você está aumentando o tom da sua voz e agora os vizinhos sabem que você não tá legal e até mesmo essa constante desconfiança de que, tal como aconteceu com Phil Collins, a cada execução da música você está perdendo mais e mais cabelo, sendo que seu maior medo é a solidão mas a calvície tranquilamente está no top 5. A hora no clipe que tá chovendo vermelho atrás dele e chovendo azul na frente, irmão, emocional demais.
[Nota da redação: este artigo foi produzido cerca de um mês atrás e segundo informações o João já está melhor, ainda que o clima pra ele no Subway ali da Rua das Laranjeiras siga sim um pouco pesado]
Sobre o churrasco da galera da academia
João Luis Jr
Um ritual primitivo mas que ainda se sustenta entre algumas pessoas com um tiquinho de tempo sobrando, é tentar assistir todos os filmes do Oscar antes da cerimônia do Oscar, como se a premiação não fosse decidida pelos votos de uma minoria de pessoas da área e sim por todos nós, na urna eletrônica, mas tem que mostrar comprovante de que viu, senão o mesário não deixa votar. Admito que tentei assistir a todos, mas por questões que vão desde tempo até ter visto o nariz falso do Bradley Cooper e pensado “não, apenas não”, vi apenas 7/10. Então ainda que “Past Lives” vá morar pra sempre no meu coração e “The Holdovers” seja um excelente filme, fica aqui meu lobby para que todos vejam “American Ficction”, porque é raro uma comédia ser reconhecida assim e todo mundo que está nesse filme merece Oscars. Vários deles. Mais de um por pessoa.
“The Streets” é um projeto que o Mike Skinner, um rapper e produtor britânico, tinha ali por volta dos anos 2000 - acho que voltou recentemente - e o último disco de estúdio se chamava “Computers and Blues” e eu ando escutando bastante. É de 2011 e tem toda uma brisa “relacionamentos na era da internet”, porém na época em que a internet ainda parecia divertida, vamos dizer assim. “OMG” por exemplo é uma canção sobre um cara espiralando forte porque viu a pessoa com quem ele tava saindo mudando o status do Facebook para “em um relacionamento sério” até perceber que o relacionamento era com ele. Tempos mais simples, eu sei.
Ainda não assisti “Drive Away Dolls”, o primeiro filme do Ethan Cohen sem o Joel Cohen (os famosos irmãos Cohen), mas tá bem interessante esse artigo sobre a Tricia Cooke, casada com o Ethan, que foi editora em alguns dos melhores filmes dos dois, e não só é co-roteirista como também co-diretora nesse novo filme, que parece bem divertido.
Por fim, descobri um blog antigo e desativado chamado "WTF DC", em que um cara listava as mortes mais absurdas e desnecessárias de personagens nos gibis da DC e ele reduziu minha produtividade em 20% durante essa semana. Pra quem gosta do tema, vale muito.