Nada de Errado Nisso #16
“My milkshake brings all the boys to the yard”
A Sociologia é um campo científico repleto de conceitos próprios e muito específicos. Assim como a Psicanálise, a História e a Ciência Política, claro. Grosso modo, um conceito é algo que expressa ou define uma ideia abstrata, mas a partir de uma estrutura formal dotada de algum rigor e exatidão.
Levando-se em consideração essa definição, meio que feita agora nas coxas, fica muito evidente o fato de que um conceito não é aquilo que um doidinho da internet decidiu que é. É algo de contornos mais rigorosos, com algum poder descritivo, repare.
Então, assim, quando usamos a expressão “Milkshake Duck” para descrever um fenômeno, provavelmente um acadêmico sério não a reconheceria como um conceito científico preciso. Mas como não somos acadêmicos, e tampouco sérios, essa nos parece uma tipologia bem excelente. O quê? Você não sabe o que significa “Milkshake Duck”? GLAD U ASKED.
A expressão surgiu em 2016, quando um tuiteiro gringo (quem mais?) sintetizou, a partir de uma piada, um fenômeno muito típico e corriqueiro na internet. Imagine que, meio que do nada, aparece um patinho fofo que toma milkshake. No mesmo fôlego o pato viraliza, geral compartilha conteúdo do pato, com canudinho e tudo, todos o amam e tal. Até que descobrem, guess what, que o pato É RACISTA. Milkshake Duck cai em desgraça e é arremessado para o ostracismo extremo.
“Ele nem era tão fofo assim”, comentam agora à boca pequena.
Numa época em que absolutamente tudo é mediado pelas redes sociais, e o nosso padrão de reação é sempre pautado por descargas de dopamina, reforço positivo, validação dos pares e o tal do algoritmo, em fancy words “fechamento epistêmico” que chama, convém não dar mole com o primeiro pato fofo, com canudinho e milkshake na mão que te apareça na frente.
Na edição de hoje Gabriel escreve sobre a descoberta do Snoopy pela Gen Z e João sobre a experiência de ter que trabalhar durante o apocalipse. Além disso, temos muitas dicas, dicas crocantes, dicas pra lá de fresquinhas. E se você gosta daquilo que lê por aqui, considere sim uma assinatura paga da Nada de Errado Nisso.
É a Tropa do Esnupi, pai, não tem jeito
Gabriel Trigueiro
Aparentemente a nova onda, a nova obsessão dos Gen Z, é o beagle mais famoso da cultura pop. Andei lendo algumas matérias a respeito, inclusive, porque num primeiro momento eu tava bem encafifado. O que diabos um cachorro criado em 1950 teria em comum com a geração TikTok?
Bom, no final do ano passado, a conta @snooopyiscool viralizou na plataforma chinesa, obtendo mais de meio milhão de seguidores. O conteúdo? Edits dos especiais antigos de animação de “Peanuts”, aqueles do Bill Melendez, com aquela trilhazinha marota do Vince Guaraldi. Às vezes os trechos são retirados das animações mais recentes, aquelas feitas pela Apple TV+.
A estética desses vídeos curtos, em que o Snoopy é o protagonista, é aquilo que alguns chamam de sad girl aesthetic — nela vemos esses pedacinhos de animações em que o nosso beagle favorito está normalmente sozinho, introspectivo e reflexivo na maior parte das vezes, ao som de algum artista contemporâneo, como Lana Del Rey ou Radiohead, por exemplo.
O interessante é que essa atualização no TikTok recupera, de certa forma, a atmosfera existencialista, às vezes sombria, da tirinha criada por Charles Schulz, ainda mais nos primeiros anos em que ela foi lançada.
Snoopy funciona um pouco como um teste de rorschach: é basicamente aquilo que você projeta. Ao mesmo tempo em que é corajoso e leal, igualmente é narcisista e blasé. Por um lado é solitário e meticuloso, mas também é gregário, amigo de todas as crianças, e caricaturalmente desastrado.
Apela a um sentimento universal de nostalgia e coziness da nossa infância, certamente, aquela energia gostosa de Toddy gelado no sofá da avó, um sentimento que se comunicou muito bem, e de forma muito direta, com a angústia existencial e a ansiedade trazida pela pandemia.
Além disso, é claro, a onipresença do Snoopy na internet pode ser interpretada como a resposta a, como já disseram muito bem, uma fadiga coletiva com uma cultura baseada em cinismo e niilismo.
É um personagem, por mais bobo que isso soe, aspiracional e apenas brutalmente fofo.
Com relação à sua onipresença recente na internet, há um dado, claro, que precisa ser lembrado. Melissa Menta, vice-presidente de marketing e comunicação da Peanuts Worldwide recorda: toda geração “descobre Peanuts” à medida que cresce. A diferença hoje em dia é a existência de plataformas como TikTok e o Twitter.
“Peanuts” foi uma tirinha que circulou ininterruptamente por mais de cinco décadas, em mais de 2600 jornais, em 75 países, e foi lida, segundo estimativas conservadoras, por mais ou menos 300 milhões de pessoas. O legado e o impacto cultural de um fenômeno desse tamanho é algo que não tem como dimensionar, é evidente.
Se pelo menos alguma fração dessa molecada que tá descobrindo o Snoopy agora for atrás de alguns dos volumes de “The Complete Peanuts”, por exemplo, a coleção organizada lindamente pela Fantagraphics entre 2004 a 2016, em ordem cronológica de publicação das tirinhas, em 26 boxes incríveis e tal, eu te garanto que o fantasma de Charles Schulz estará sorrindo satisfeito, sentadinho e confortável em alguma nuvem no céu muito bem desenhada e colorida em tons pasteis.
Algumas importantes informações da nossa empresa para funcionários preocupados com o fim do mundo
João Luis Jr.
Diante de todas as dúvidas sobre como proceder em cenários distópicos que foram levantadas em nosso último evento de RH, que vão desde as novas orientações para solicitar regulagem dos ar-condicionados em caso de temperaturas acima de 85ºC até normas de atendimento caso algum cliente se identifique como um dos cavaleiros do apocalipse (máximo de quatro por setor), decidimos formalizar aqui nesta breve FAQ algumas das principais questões que foram debatidas durante a palestra "Fim do Mundo: tragédia ou desafio?" oferecida pelo nosso CEO, Betinho Assumpção.
Estamos realmente vivendo o apocalipse?
Primeiramente queremos deixar claro que é preciso evitar posturas alarmistas. O céu está coberto por uma fumaça tóxica? Sim. O sol está vermelho e chovem gotas de sangue? Também. O medidor de umidade do ar localizado na frente do prédio não está mais apresentando nenhum número, apenas a palavra "MORTE" em letras vermelhas, além de emitir alguns gritos bem agudos, principalmente por volta de meio-dia? É o que as pessoas estão dizendo.
Mas são situações assim que testam o mindset de um profissional de sucesso, separando quem está realmente disposto se dedicar pela nossa empresa de quem vai deixar que qualquer pequeno contratempo, como a lamentável situação da morte de todos os primogênitos, sejam eles homens ou animais, impeça a nossa busca por resultados.
Ou seja, mais importante do que estarmos ou não vivendo o fim dos tempos ou um momento de extinção global é se você, enquanto colaborador, vai ser capaz de extinguir as reclamações dos nossos clientes e levar ao fim o seu backlog de demandas. E como foi informado na palestra, vamos sim conduzir processos seletivos internos para substituir os dois gestores que perdemos durante o evento a que a mídia se refere como "arrebatamento", ainda que se faça necessário reforçar que qualquer ausência por intervenção divina precisa ser negociada com seu superior imediato.
O que posso fazer para ajudar nessa situação?
Diante do total e completo caos climático criado por séculos de capitalismo predatório, que culminou num sistema agroindustrial que busca o lucro a qualquer custo, mesmo que pra isso precise esgotar de maneira absolutamente irracional todos os recursos do planeta Terra, recomendamos que os colaboradores tomem banhos mais curtos e utilizem apenas uma folha de papel toalha. Também reduzimos o intervalo de almoço para apenas 40 minutos visando minimizar os riscos corridos pelos colaboradores que, no caminho para os restaurantes self-service, vinham sendo perseguidos por bárbaros, zumbis e o que parecia ser uma criatura misteriosa num robe vermelho que apenas balbuciava que "é hora de se arrepender, de se arrepender, de se arrependeeeeeerrrrrr".
O trabalho presencial segue normalmente?
Ainda que o deslocamento para a empresa esteja sim um pouco mais complicado em virtude das nuvens de gafanhotos e das ruas cobertas de rãs, além das constantes chuvas de granizo e da escuridão que vem encobrindo o sol nos últimos 3 dias, seguimos acreditando que realizar de maneira presencial diversas reuniões do Teams é sim indispensável para reforçar nossa cultura organizacional. Mesmo os funcionários que foram atingidos pela praga de piolhos devem continuar se apresentando nas dependências da empresa, que já teve seu isolamento acústico reforçado pra que o som das trombetas do apocalipse não prejudique a concentração nos horários de trabalho.
Como manter o foco em situações distópicas?
Você sabia que o ideograma chinês para “crise” é formado pela soma dos ideogramas de “possível morte terrível ao ser raptado por um dos soldados do exército de satanás” + “oportunidade”? Pois aqui na nossa empresa acreditamos muito na possibilidade de transformar essa experiência potencialmente negativa que é o fim do mundo num desafio para os colaboradores e uma fonte de lucros para nossos acionistas.
Por que não aproveitar a noite eterna causada pelo fato de que o sol aparentemente acaba de ser devorado por uma entidade cósmica além da compreensão humana para trabalhar até um pouco mais tarde? Os constantes gritos das almas condenadas podem ser uma distração mas também uma fonte de inspiração. Por que não usar o fato de que o fim parece cada vez mais próximo para participar das reuniões como se não houvesse amanhã, já que provavelmente não haverá mesmo?
O fim dos tempos gera atestado médico?
Não, não gera.
Três coisinhas antes de acabar
João Luis Jr.
O mesmo jornalista que entrevistou a IA da Microsoft e foi assediado pelo algoritmo, que sugeriu que ele abandonasse a esposa pra que os dois fugissem juntos, descobriu que outras inteligências artificiais começaram a falar mal dele porque essa entrevista prejudicou a reputação da categoria. Sério, isso aconteceu e esse artigo é sobre o que ele descobriu sobre manipulação de IA e como você pode moldar as opiniões que as inteligências artificiais tem sobre você. Bizarro e não é pouco
Fui ao cinema assistir o novo do Karim Aïnouz e a história do jovem criminoso que busca refúgio num motel de beira de estrada com uma turminha do barulho que apronta todas em clima de muita azaração e violência doméstica me pegou sim. Nataly Rocha está espetacular no papel de Dayana e Fábio Assunção está muito bem como Elias, num filme que no geral funciona demais visualmente e como narrativa, ainda que Iago Xavier, no papel de Heraldo dê algumas rateadas nos monólogos mais intensos, mas eu também sou pouco convincente nessas situações, então zero críticas, só solidariedade. "Motel Destino" tá sim valendo bem à pena.
Por fim, finalmente comecei "The Leftovers", uma dessas séries que eu queria muito ver anos atrás mas que acabaram me escapando por questões de "existe um limite pro tanto de coisas que um ser humano pode ver ao mesmo tempo" e mais uma vez estou seduzido pelo canto dessa sereia calva chamada Damon Lindelof, que sabe como poucos o jeitinho certo de iniciar uma série. A trama de um mundo que passou pelo famigerado "arrebatamento", com uma porcentagem da população desaparecendo (possivelmente porque foi pro céu) e as pessoas que ficaram tentando sem sucesso não surtar totalmente é das coisas mais instigantes que vi nos últimos tempos e estou absolutamente engajado. Justin Theroux brilha muito e Carrie Coon é talvez a atriz que melhor personifique o conceito de "mãe que está prestes a explodir na reunião de condomínio, você não deveria mexer com ela não".
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Questlove recebeu Lena Waithe em seu podcast.
Derek Guy entrevistou Bruce Boyer, men’s fashion guy das antigas, que lançou um livro no ano passado sobre sua outra paixão: blues, jazz e early rock.
Este boiler room do Air é pica.
O perfil da AskOkey tem sempre excelentes discussões sobre moda masculina e alfaiataria.
Sobre a importância da atuação de Gena Rowlands em “Uma Mulher Sob Influência”.
Um lembrete importante de Toni Morrison sobre a natureza do trabalho.
73 questões da Vogue para a Anna Wintour:
Segura esse Tiny Desk do Maxwell (vulgo papai).
Este disco do Sérgio Mendes, gênio que infelizmente nos deixou há exatamente uma semana, é bom demais. Além disso, é o favorito dos caras da Cortex, que tocará aqui em novembro desse ano.
E para encerrar as recomendações de hoje, Nick Cave lançou o seu “Wild God”, um disco de conversão poderoso, extremamente bonito e de um otimismo violento.