Nada de Errado Nisso #10
A gente muitas vezes não espera nada e mesmo assim consegue sair decepcionado
E tivemos aí mais uma quinzena que não foi fácil para os sonhadores, além de ter sido bem complicada pra quem só queria dormir e ouso dizer que profundamente desagradável pra quem estava acordado.
A política brasileira segue seu jogo de “a direita vai inventar uma atrocidade tão absurda que a esquerda vai considerar praticamente uma vitória se acontecer apenas uma atrocidade média, mas que, se você for pensar, ainda é uma baita de uma atrocidade, então a gente tá perdendo de qualquer jeito”, com direito a pessoa interpretando papel de feto no Congresso e o presidente do Conselho Federal de Medicina dizendo que talvez isso de autonomia da mulher tenha ido longe demais, como numa cena de “Bojack Horseman”. Em suma, um período tão complicado que Noam Chomsky aparentemente morreu e voltou, algo que normalmente é feito por Jesus Cristo e não por linguistas da escola gerativista, e ninguém nem teve tempo pra ficar impressionado.
E nós aqui da “Nada de Errado Nisso”, eleita três vezes pela Veja Rio como a newsletter que oferece as melhores válvulas de escape da Zona Sul da Cidade Maravilhosa, vamos obviamente evitar falar de qualquer um desses assuntos. Primeiro porque sinceramente você já deve ter lido um bocado sobre isso e depois porque com certeza tem gente bem mais preparada e qualificada pra falar sobre esses temas – ainda que exista sim uma esquete a ser escrita onde Noam Chomsky chega no céu e São Pedro é interpretado por Paulo Silvino, que fica repetindo “ah, ele gosta de uma lííínguuuua”.
O que teremos nesta edição então? Gabriel debate as recentes polêmicas envolvendo Ed Motta e João discute como lidar com seu amigo que começou a mexer com essas coisas de corrida, além das tradicionais dicas da redação, que todo mundo já conhece e aprecia. E claro, aproveitamos esse momento para convidar você, nosso querido assinante gratuito, a migrar pra um dos nossos planos pagos e receber, na próxima sexta-feira, um conto inédito do João, nosso primeiro conteúdo exclusivo para os assinantes pagos, e a real razão pela qual Noam Chomsky decidiu que ainda não dava pra morrer agora.
Confia e vem.
Meu amigo começou a correr, e agora?
João Luis Jr.
Você pensou que as pessoas estavam exagerando. Que era uma dessas coisas que só aconteciam com os outros, jamais aconteceria com alguém que você conhece, que era desses lances que todo mundo fica falando em rede social mas é meio que um espantalho retórico, não faz parte do mundo real. Mas não, os boatos eram verdadeiros, o risco era maior do que você pensava e agora você tem sim amigos que estão mexendo com esse negócio de correr.
Existe obviamente um choque inicial. A amiga que quase nunca postava fotos, agora tem um Instagram cheio de imagens de corrida, a querida inimiga do fim agora começa a sair mais cedo de eventos sociais alegando que “precisa treinar”, o conhecido que solta um “estou bebendo menos porque esse fim de semana tenho prova” e você pergunta pra pessoa se ela voltou a estudar e ela responde que não.
Começam a surgir então outras mudanças mais sutis. Alterações na linguagem, como pessoas falando com você sobre “pace” como se fosse algo que você deveria entender, gente no grupo de Whatsapp combinando de ir na Decathlon porque lá tem coisas que você “não acha na Centauro” e até mesmo pessoas falando em sabor de gel, e você acredita que nada numa vida saudável deveria incluir ingestão de produtos de cabelo.
Os motivos que podem levar a isso são vários, claro. Algumas pessoas que vão parar nessa por questões de saúde, porque aquele lance da expectativa de vida do período medieval não estava de todo errada e muitos de nós já estão pifando forte aos 30 anos. Outros vão parar numa pista por conta do senso prático de realização que a corrida oferece - quase nenhuma outra atividade na vida adulta te oferece uma medalhinha apenas por participar, e olha que você já tentou implementar essa política em relacionamentos anteriores.
Muita gente faz isso por conta da crise da meia-idade, claro, e em casos mais extremos existem até pessoas que perceberam que é sim possível disfarçar uma quase total ausência de personalidade e conquistas pessoais com um hobby, desde que você leve esse hobby muito a sério e esteja disposto a tentar inseri-lo em absolutamente toda e qualquer situação e contexto (“legal você ter esse ótimo trabalho e essa vida pessoal incrível e fazer essas viagens, mas sabia que eu consigo correr 42 km sem parar????”)
E ainda que esse tipo de mudança possa gerar incômodo e confusão num primeiro momento (“como assim você paga pra correr?” “desde quando um tênis de corrida custa mil reais?” “como assim a sua planilha?”) é importante lembrar que “comecei a correr” é talvez uma das frases mais tranquilas e menos problemáticas que você pode ouvir de um amigo na faixa dos 30 ou 40 anos nos dias de hoje - sempre que você achar incômodo um amigo falando de corrida, lembre que ele poderia estar falando, por exemplo, sobre criptomoedas, tentando te vender um timeshare, ou, em casos mais extremos, perguntando se você já ouviu a última edição do podcast dele.
Então a melhor rota, diante do amigo ou amiga corredora, é a da empatia. Você não entende as motivações dele? Tudo bem, talvez ele também não entenda algumas das suas. Você às vezes tem preguiça do tanto de fotos de corrida que ele posta? Bem, você criou um perfil de Instagram específico pro seu cachorro, onde você legenda as fotos como se fosse o bichinho digitando, então ninguém aqui tem as mãos limpas. Ele te chamou pra correr? Diga que não dá, porque é no horário do seu beach tennis - você não precisa necessariamente fazer beach tennis, mas a sensação é a de que todo mundo que não está correndo está fazendo beach tennis, então ele provavelmente vai acreditar. O importante aqui, sempre, é não partir o coração de ninguém.
Um tanto de mentira e um pouquinho de verdade
João Luis Jr
Um ator que, para minha grande surpresa, tem um índice de aproveitamento muito alto comigo é o cidadão Glen Powell, que nunca vi em um filme do quão eu não tenha gostado (e não falo apenas de “Top Gun Maverick” ou “O Plano Imperfeito”, mas sou também uma pessoa que gostou de “Anyone But You” e num dado momento assisti com minha mãe um filme chamado, sem sacanagem alguma, “A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata”, e ele estava lá e o filme era divertido). E ele mantém essa regra com “Hit-Man”, o mais recente filme de Richard Linklater, com quem ele já havia trabalhado em “Everybody Wants Some!!” e que dessa vez traz a história mais ou menos real de um professor que começa a trabalhar para a polícia como um falso assassino de aluguel, para pegar no flagra pessoas tentando contratar um assassino de aluguel. Nesse processo ele obviamente se apaixona por uma mulher que quer contratar um assassino de aluguel e juntos eles se envolvem em diversas aventuras de moral duvidosa, já que a mensagem do filme parece ser que talvez você precise sim mudar pra ser amado e que possivelmente é sim correto matar algumas pessoas, se elas forem especificamente insuportáveis. E suma, é divertido, é interessante, Glen Powell e Adria Arjona estão perfeitos, vale a pena.
E esse tuite aqui me lembrou de uma série da qual eu gostava muito e recentemente estava lendo sobre, que é “Newsroom”, a série sobre jornalismo que o Aaron Sorkin produziu entre 2012 e 2014 e que não apenas tem um elenco totalmente fora da curva – desde Jeff Daniels até Dev Patel, passando por Emily Mortimer, Jane Fonda e Sam Waterston – como tem uma visão tão idealista do que o jornalismo pode e deveria ser que chega a dar um quentinho no coração, até você, sei lá, ver um editorial da Folha dizendo que o Tarcísio como presidente é a única solução pro Brasil e aí você fica triste de novo. Profundamente americana, mas ótima série.
Por fim, descobri essa semana o podcast “What Went Wrong?” que fala sobre algumas das mais atribuladas produções de filme já registradas, tanto de obras que deram certo como das que deram errado, e que me fez ter uma nova apreciação por qualquer pessoa que consegue fazer com que um filme fique pronto - o episódio sobre Chinatown, em que todo mundo saia na porrada e atirava urina um no outro é especialmente fascinante.
Ed Motta está errado, mas não como você pensa
Gabriel Trigueiro
A história você conhece de trás pra frente: Ed Motta diz algo ultrajante, elitista, esnobe. A turba da internet reage no mesmo fôlego, numa paleta que varia do desdém condescendente à ira santa. Ed Motta pede desculpas públicas. Agora volte à primeira casa.
Aconteceu lá atrás quando falou mal de brasileiros que, morando no estrangeiro, iam aos seus shows nos EUA e na Europa e pediam aos berros “Manoel”.
Aconteceu quando falou mal de Raul Seixas.
Acontece agora quando afirma que “Qualquer um que ouve hip hop é burro, qualquer um, sem exceção".
Fora os memes gerados, muitas vezes inegavelmente engraçados, há um aspecto essencialmente cruel e perverso nessa dinâmica: a cada vez que Ed fala algo polêmico, ou apenas cretino e equivocado mesmo, em uma de suas mil lives diárias no Instagram, mais ele mesmo, e perdoem aqui o neologismo, se memefica e barateia sua própria trajetória artística.
Porque, veja, o Ed Motta que é discutido e lembrado jamais é o músico excepcional que gravou discos como “Dwitza”, “Aystelum” e “AOR”, mas sempre o personagem cartunesco. Mas, francamente, como dizia o outro: “Stop all that coon shit / Early morning cartoon shit”.
O tratamento que a internet dá ao sujeito é o de transformá-lo em um coon card, em nada mais do que uma caricatura racial. Achatam um ser humano complexo, até que ele caiba na piada/meme do Zé Graça branco do Twitter. Pronto, missão cumprida.
Porque, repare, é uma leitura superficial das coisas, e algo cruel inclusive, responsabilizá-lo integralmente por todos esses quiprocós. Há responsabilidade dele, claro, mas digamos que no mínimo ela é compartilhada e assimétrica.
A verdade é que se a expressão silenciamento tem algum sentido descritivo/analítico, ela tem ao se referir à carreira de Ed Motta. Comercial demais para o pessoal do jazz, mas sofisticada e cabeçuda demais para a turma do pop.
Ed sempre habitou um limbo artístico e foi pautado por um sentimento brutal de inadequação. Do mesmo modo que o fato de ser um homem negro de pele clara no Brasil, você não tenha dúvidas, adicionou camadas a mais de ambiguidade e de complexidade na construção de sua própria identidade.
Esses dias escutei com calma o “Dwitza”, e é muito impressionante como um disco gravado ainda em 2002, em que se ouve a influência de um Moacir Santos, Ennio Morricone, Dom Salvador, valsas, temas musicais à moda de um Stephen Sondheim, de um Henri Mancini, enfim, um álbum com aqueles arranjos todos estranhos e bem bonitos, além de quase todo ele instrumental, não seja levado artisticamente a sério como deveria etc.
Aliás, é um pouco pior do que isso. É um disco que simplesmente não existe para a nossa crítica bem-pensante. Por quê?
Ed Motta teve, por motivos variados, alguns de responsabilidade estritamente pessoal e outros de ordem mais ampla e genérica, um silenciamento e apagamento em vida, uma violência com a qual um músico e artista de seu tamanho jamais deveria ser submetido.
A ironia da coisa foi a de que em algum momento ele inferiu que a forma mais eficaz de ser visto e ouvido (talvez a única?) era a de se comunicar através deesses baits — de frases expressas dois ou três tons acima do esperado, quase como se fosse alguém que tivesse decodificado e finalmente hackeado um sistema de comunicação complexo e hostil.
Infelizmente sabemos, ou pelo menos deveríamos saber a essa altura: o buraco é bem mais embaixo. Ninguém mais pautado pela opinião alheia do que um “polemista”, afinal.
Pesquise “Ed Motta” no Google e tente reparar a proporção entre, de um lado, os resultados que se relacionam à sua obra e, do outro, a última polêmica em que se meteu. Sua fala a respeito do hip hop é equivocada e tola. Mas é difícil olhar para alguém como Ed e não enxergar um homem negro em sofrimento.
Ralph Ellison escreveu na década de 1950 sua obra prima “Homem Invisível”, como um manifesto contra a tendência que dominava na literatura dos autores negros americanos de sua época: o realismo social e a armadilha de performar o tipo certo de negritude para uma classe intelectual composta majoritariamente por gente branca.
Ed Motta, ainda que do seu jeito errático e desastrado, se filia a essa tradição. A Tijuca sempre vence, afinal.
Da mesma forma que Ellison se perguntava se havia espaço em sua época para um Dostoiévski negro, Ed parece sempre nos perguntar se há espaço para, digamos, um João Donato negro.
Sua fala sobre o hip hop foi boba, mas a reação coletiva da comunidade, aliada à sua facilidade para cair na pilha e à incapacidade de ler adequadamente o personagem, com todas as suas nuances e contradições, me fez lembrar aquelas aspas de Teddy Perkins, a respeito do rap, no episódio clássico de “Atlanta”: “I found that it never quite grew out of its adolescence”.
Já passou da hora, inclusive.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Esta conversa aqui do Questlove com os caras do Weezer (Rivers Cuomo e Patrick Wilson) está sim o fino da bossa.
E esta aqui, do Lil Yachty com o James Blake.
Este texto, sobre a influência da literatura de horror gótica em Scooby-Doo.
Andrea Long Chu é uma gênia e uma das melhores críticas em atividade. Esta entrevista, na NYRB, tá brabona.
Esta longa reportagem, meio ensaística e ridiculamente bem escrita pelo Ian Parker, sobre como Kanye West comprou um tesouro arquitetônico assinado pelo Tadao Ando e, na sequência, destruiu todo o seu interior, é bem linda e triste. Uma metáfora talvez in yo face demais sobre sua própria trajetória, mas nem por isso menos verdadeira.
Este moleque aqui é ridiculamente engraçado, genial e desequilibrado. Ele me lembra muito o tipo de humor que o pessoal da Pepa Filmes fazia aqui no Rio de Janeiro, no início dos anos 2000.
Ah, esqueci de divulgar: no início do mês a Folha publicou um texto meu sobre uma antologia nova boazona do Neil Gaiman.
E, para concluir, toma uma playlist de desenhos do Tom & Jerry, da fase abençoada do Chuck Jones.
Melhorias sempre, jogador.