É como os supergêmeos ativando a forma de newsletter
Você já conhece a gente.
Gabriel Trigueiro, doutor em história, especialista em ideologias políticas, já escreveu pra Época, pra Folha, é benquisto no Galeto Sat's e foi ameaçado por Olavo de Carvalho, quando o Olavo estava vivo, porque se fosse hoje em dia seria um pouco assustador, vamos admitir. Idoso dá pra lidar, assombração já fica mais esquisito.
João Luis, muito querido por várias pessoas de sua família. Não todas, assim, mas várias. Talvez não várias, mas algumas, assim, uma parte legal.
Juntos já produzimos artigos para sites, jornais e revistas, já abordamos temas que vão desde quadrinhos do Homem-Aranha até a ascensão do bolsonarismo e na bibliografia desta dupla pra lá de dinâmica você encontra desde um estudioso que já destrinchou tópicos complexos da cultura hip-hop até um homem que fez uma versão pagode do jogo de cartas Magic onde o Royce do Cavaco tem 2 de defesa e 3 de ataque. É meio como aquela época em que o Outakst lançava um disco mas eram dois discos, então tinha uns 50 ritmos somando tudo.
Em suma, não se pode falar que não tem variedade de assunto por aqui.
E é isso que a gente quer oferecer na “Nada de Errado Nisso”: variedade de assuntos. Ampla variedade. Assim, variedade pra caramba mesmo. A gente pode falar da eliminação da semana no BBB? Pode, claro. Mas a gente também pode falar de racismo estrutural, déficit do transporte ferroviário no Brasil, o filme do “Howard The Duck” em que fica bem mais do que implícito que foi praticada a zoofilia, e como o milho de pipoca Chinesinho render mais que o Yoki é uma manobra de soft power realizada pelos comunistas.
Teremos textos longos, teremos textos curtos, teremos dicas, teremos a anti-dica, que é uma orientação do que você deveria evitar, teremos receitas, teremos tirinhas do “Fantasma” com os diálogos substituídos por letras do cantor Maurício Manieri, teremos uma edição especial sobre como soltar balão não é realmente perigoso, isso é apenas o que as grandes empresas de eletricidade querem que você pense. Serão 6 páginas, ela será ricamente ilustrada, se você imprimir todas as páginas e dobrar do jeito certo vai dar pra fazer um balão com ela.
Então na primeira edição desse novo projeto quinzenal queremos te convidar pra vir com a gente. Sim, suba conosco nesse tapete encantado tal qual a princesa Jasmin fez ao receber o convite de um homem acusado por crimes e que conversava com um macaco (várias red flags, Alladin), e nos acompanhe nessa jornada de análises, discussões, debates, aleatoriedades e também listas, contos e vários outros formatos que a gente quer testar por aqui.
E se após ler essa primeira edição você sentir aquela firmeza, pegar aquela confiança, acreditar que encontrou um porto seguro num período de tantas incertezas, te convidamos a dar aquela contribuição, a fazer aquela assinatura paga - 10 reais o mês, 100 reais o ano, mas o céu e o seu coração são o limite - a patrocinar esse projeto, a entrar de cabeça no mundo do mecenato e durante discussões lançar a frase “BEM, EU FINANCIO A ARTE NO BRASIL, E VOCÊ?” e se comportar como se isso fosse um argumento poderosíssimo.
Confia, dá aquela respirada e vem com a gente sim.
Meu argumento um tanto quanto excessivamente pessoal sobre “The Bear” ser uma comédia
João Luis Jr.
Antes de qualquer coisa, preciso estabelecer que o enterro do meu avô Nilton foi um dos momentos mais tristes da minha vida, por uma série de razões.
Porque foi o primeiro funeral de um familiar em que estive presente, já que quando meu avô Rubens morreu não consegui folga do trabalho e a família estava numa situação financeira daquelas em você engole o choro e vai lá bater seu ponto, pensando que manter seu emprego vai deixar seu avô, ex-cozinheiro, ex-zelador e ex-faz tudo, bem mais orgulhoso do que qualquer despedida emocionada.
Daí a morte do Seu Nilton foi a minha primeira experiência com o funeral de uma pessoa da minha própria família. Já havia me despedido de amigos, de pais de amigos, avós de amigos, mas aquela era a primeira vez em que estaria lá para dizer adeus, pessoalmente, pra alguém que era, por falta de outra expressão, sangue do meu sangue.
Outro motivo é o que os meus avôs eram e representavam pra mim. Ainda que sempre tenha me sentido mais próximo de minhas avós, muito provavelmente pelo quanto elas me mimavam e pela facilidade maior que tinham de comunicar afeto, meus dois avôs, Seu Nilton e Seu Rubens, sempre pairaram na minha vida, desde que conseguia me lembrar, como duas grandes referências de um tipo de homem que eu queria ser, mas não conseguia ver o caminho para me tornar.
Seu Rubens o patriarca negro que entendia de samba e futebol, o carioca suburbano, trabalhou a vida toda, mandou pra faculdade a primeira geração de pessoas da família e no fim perdeu a guerra pra complicações da diabetes, que tiraram primeiro sua saúde e aí sua alegria de viver. Seu Nilton, o homem que veio com a família do interior de Minas e praticamente desbravou uma parte da Baixada Fluminense, trabalhou com explosivos numa pedreira e tinha histórias sobre pescaria e picadas de cobra. Um homem tão ativo que se aposentar significou praticamente deixar de existir.
Ambos com defeitos e problemas que eu só vim a entender e conhecer mais tarde, mas que pra mim eram elos com um passado e uma origem que eu tinha, mas muitas vezes me escapava. A cor da minha pele que vinha de um avô, o meu jeito retraído que lembrava outro. Como todos os avós eles eram ao mesmo tempo profundamente reais e etereamente feitos de história e de histórias.
E claro, a pior parte, que era ver minha mãe. Porque se pra mim o seu Nilton era um ponto de origem, uma presença periódica, um homem construído mais por coisas que me contaram do que coisas que vivi, pra minha mãe era tudo mais simples e mais dolorido. Ele era o pai dela. Com todas as complicações, tensões, saudades e amor que isso envolve. E um pai que deixava ali uma mãe, minha avó Célia, que vivia um outro tipo de dor, totalmente diferente, que é a de perder a pessoa com quem você esteve a vida toda, um tipo de sofrimento que mal consigo imaginar e espero nunca precisar viver.
E foi nesse cenário, num calor avassalador que apenas a Baixada consegue oferecer, num cemitério não tão bem cuidado, eu segurando a mão da minha mãe enquanto ela segurava a mão da minha avó, que aconteceu.
Os coveiros, alguns dos quais pareciam vagamente alcoolizados, começaram a descer o caixão do meu avô na cova. O caixão não parecia caber. Eles deram uma empurradinha de leve. Seguiu não cabendo. Eles deram uma empurradinha mais forte. Silêncio. Ainda não cabia e seguia parecendo que não ia caber. Mas a decisão deles foi dar mais uma empurrada, porque, bem, quando você é um coveiro meio alcoolizado, a cabeça funciona diferente, tu tem uma coisa só sua rolando. Obviamente não deu de novo. Mais algumas empurradinhas. De leve, vai que agora vai.
O silêncio era grande demais e o pastor puxou uma música. Veio então uma enxadada de lado no caixão. Nada ainda. E foi aí que o cara decidiu que poderia dar certo se ele desse uma bicudinha de leve no caixão. Só um chutinho. Mas aí vieram duas bicudinhas. Três bicudinhas. E aí ele meio que ficou em pé no caixão e deu um pulinho.
E bem, aí eu ri. Baixinho, mas ri. Não porque não estava sentindo uma dor imensa, não porque não estava de coração partido pela minha mãe, pela minha avó, por todas as histórias que eu não poderia ouvir e meu avô não poderia me contar. Por toda a minha família e tudo que a gente estava ali, vivendo e perdendo.
Mas porque, assim, dois coveiros, meio bêbados, forçando a barra pra descer um caixão dentro de uma cova pequena demais, enquanto as irmãs da igreja cantam “derrama senhor derrama” é realmente, se você parar pra imaginar, um lance engraçado. Se fosse uma série, seria uma boa cena de comédia.
Aproveitar que a gente tá indo pro mesmo lado, te contar um negócio
João Luis Jr.
Ainda que única diferença entre podcast e rádio seja que uma dessas mídias tem a adesão das minas brancas que gostam de ouvir sobre crime e a outra dos motoristas de táxi que gostam de falar sobre crime, poucos programas abraçam tanto essa semelhança quanto “Welcome to Night Vale”, um podcast já bem antigo – está pra lá da edição 240 – mas que eu só descobri no fim do ano passado. Se você sempre sonhou em como seria se a sala de roteiro de Arquivo X tivesse produzido uma radionovela, você obviamente é uma pessoa com sonhos esquisitos, mas sim, você encontrou o que você queria.
Outro lance que tá bem legal é o “Cavaleiro da Lua” do Jed Mackay, que começou em 2021 e agora tá fechando um ciclo e começando outro, mas dá pra encontrar na internet e tá saindo encadernado. É um gibi que apresenta o protagonista como um misto de sacerdote, vigilante e maluco do caralho, enfrentando vampiro e vilão que usa uma bola 8 gigante de sinuca na cabeça. Não consigo fazer parecer mais interessante do que isso, então se essa descrição não te pegou, é que não é pra você e tá tudo bem.
Tenho ouvido também bastante a banda “Future Teens”, principalmente o disco deles de 2019, “Breakup Season”, que é absolutamente branco – cada música que eu ouço a minha melanina cai 3% - mas ao mesmo tempo avassaladoramente triste e tem músicas que terminam com versos como “getting used to my company/was never gonna amount to loving me/not even temporarily”, pra quem quer ficar numa energia tão baixa que a Light não vai te mandar conta por dois meses, porque o valor mínimo pra emissão é 50 reais.
Por fim tenho visto ao menos um episódio por dia de “It’s Always Sunny In Philadelphia” e me sentido absolutamente sujo e culpado por rir de coisas que são terríveis. Se você gosta desse tipo de sensação, fica a dica. (Tentei procurar um trecho de algum episódio que eu pudesse postar sem me sentir culpado e não achei, pra vocês terem ideia)
Preppy e posturado
Gabriel Trigueiro
Tem aquela história que Paulo Francis uma vez contou no Pasquim: sobre essa tour norte-americana dos Rolling Stones, em que Truman Capote iria acompanhá-los de costa a costa e cobrir cada detalhe e tal.
Em um dado momento, Capote percebeu que a plateia soava sempre muito semelhante entre si: nas roupas, trejeitos e mesmo nas reações. E só não achou que era a mesma galera, indo a todos os shows sistematicamente, porque custaria um absurdo transportar o mesmo pessoal, como uma claque de cidade a cidade, ao redor dos EUA. Como Francis arrematou:
Isso é uma boa nota ao pé de página sobre rebeldia. Rebeldia de grupo é grupo. Rebeldia de grupo vira revolução ou é moda, conformismo, em suma.
O que sempre me interessou na moda, além da beleza, é claro, algo que em si já se justifica, são os seus aspectos históricos, sociológicos e de construção de identidade. Se você pega alguém como o Derek Guy, o camarada que escreve sobre moda masculina no Twitter (e em lugares mais respeitáveis como Esquire, NYT e Washington Post), ele sempre comenta como a moda é um negócio que pode ser lido da mesma forma que compreendemos a linguagem. Você produz sentido, se comunica e subverte.
Black preppy
Aliás, é interessante observar um movimento que tem ocorrido nos últimos anos: a adoção da estética preppy pela comunidade negra, de um lado, e o reconhecimento, ainda que tardio, por parte de grifes e maisons de alta costura de que os centros urbanos responsáveis pela criação de cultura e arte mais sofisticados são invariavelmente negros.
Vamos pelo começo. A estética preppy tem esse nome devido ao estilo usado pelos estudantes das escolas preparatórias particulares norte-americanas de classe alta na primeira metade do século 20, mas sobretudo popular nas universidades da Ivy League (Harvard, Princeton, Yale, Columbia etc.) ao longo da década de 1950 até meados dos anos 1960: camisas polo; camisas oxford; mocassins; saias plissadas; cardigans; vestidos de tênis, você sabe.
Esse estilo se referia historicamente a uma elite aristocrática e old money e a instituições e lugares exclusivistas, criados a partir de princípios e barreiras de classe e raça.
O negócio é que importantes lideranças negras norte-americanas sabiam que a moda tinha um papel importante, em alguns casos decisivo e existencial, em suas vidas. Não é por outro motivo que gente como John Coltrane, Miles Davis, James Baldwin, Ralph Ellison, Martin Luther King e Malcolm X, além de serem nomes de excelência em seus respectivos campos, permanecem até hoje como ícones de moda e elegância.
Cultura Lo Life
É interessante reparar naquilo que aconteceu nos EUA no início da década de 1980, com o surgimento dos Lo Lifes — uma subcultura muitas vezes tratada meramente como gangue, em Brownsville, uma área pobre e guetificada do Brooklyn. Os Lo Lifes eram garotos pretos e latinos obcecados com a marca Polo Ralph Lauren. Não por acaso a marca preppy por excelência (juntamente com Brooks Brothers, Lacoste, Tommy Hilfiger etc).
A Polo sempre representou um ideal nostálgico e aspiracional de Americana. À moda de um Norman Rockwell, mas em forma de grife.
A molecada às vezes dava lá seu jeito e comprava as peças. Mas muitas vezes o que ocorria era uma invasão coordenada de bonde às lojas, seguida de pequenos furtos e mesmo de roubos mais descarados: o que alimentava um mercado clandestino de moda, com itens com preços mais acessíveis ao consumidor final, claro, mas não era um troço que ajudava na diminuição do estigma de “gangue” dos Lo Lifes, você pode imaginar.
Talvez o ponto alto da cultura Lo Life tenha sido quando, no clipe de “Can It Be All So Simple”, do Wu Tang Clan, Raekwon apareceu vestido com um corta-vento da Polo (vermelho, amarelo e azul), com “Snow Beach” gravado na barriga.
Ao longo dos anos a Ralph Lauren se esquivou o quanto pôde de uma associação mais direta com a cultura Lo Life, até finalmente abraçá-la com alguma relutância e ambiguidade nos últimos anos. Aqui no Brasil algo mais ou menos análogo ocorreu com a Lacoste e a galera do trap, do rap e do funk.
Tiroteio e dandismo
Em 1999 Sean Combs, mais conhecido como P. Diddy, se envolveu em uma confusão que culminou em tiroteio generalizado em uma boate.
Ao mesmo tempo em que respondia judicialmente ao quiprocó, Combs começou a se vestir todo preppy e andar pra cima e pra baixo com seu assistente Fonzworth Bentley, um dândi moderno (com gravatas borboletas de cores vivas, ternos de alfaiataria, o diabo), e a frequentar espaços tradicionalmente brancos, como os Hamptons e Saint-Tropez.
Na época, a forma mais eficaz de escapar de qualquer estereótipo racial, sobretudo de angry black man, era abraçar esse dandismo sem limites. Combs não pensou duas vezes, claro.
De lá pra cá muita coisa mudou: Pharrell virou diretor criativo da Louis Vuitton e uma marca tradicional como a Fendi, por exemplo, não hesita em fazer shows, parcerias e collabs com artistas como Lil Uzi Vert e 21 Savage.
Mais cedo ou mais tarde o capitalismo invariavelmente descobre uma forma de fagocitar alguma coisa nova e orgânica que até então estava nas margens da cultura. De todo modo, moda nunca é apenas moda. E, mais ainda, a relação entre moda e cultura negra é sempre mais complexa, ambígua e interessante do que aquilo que nos é sugerido na superfície.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
No momento leio “Status and Culture: How Our Desire For Social Rank Creates Taste, Identity, Art, Fashion, And Constant Change”, de W. David Marx.
Foi Tom Wolfe quem escreveu que na contemporaneidade as pessoas se sentem mais à vontade em confessar publicamente intimidades sexuais do que em admitir a existência e o peso da procura por status em suas próprias vidas.
Status and Culture é crítica cultural finíssima e passa, por exemplo, de uma entrevista de Beck, em início de carreira, a Thurston Moore, já veterano, até o súbito interesse da aristocracia europeia, na virada do século 19 para o 20, por balé russo e abacaxi. De agora em diante, qualquer coisa que esse cabra W. David Marx escrever, eu vou atrás.
Comecei muito tardiamente a assistir a Frasier (David Angell, Peter Casey e David Lee), uma sitcom dos anos 1990 maravilhosa, premiada à vera, mas que talvez tenha ganhado uma medalha de prata na categoria “Melhor Série de Humor da NBC da década de 1990”, porque o ouro foi parar no pescoço de Seinfeld, claro.
Frasier é um spin-off de outra sitcom: Cheers, e continua a história de Frasier Crane (Kelsey Grammer), um psiquiatra com um programa de rádio extremamente popular, no qual ele tenta resolver ao vivo os problemas e as questões de sua audiência. Crane é um esnobe obcecado por status que é confrontado com inúmeras dinâmicas de classe e, claro, freudianas, quando resolve acolher seu pai Martin (interpretado por John Mahoney) em sua casa — um policial cabeça dura, recém-aposentado por invalidez e impaciente com as frescuras do filho.
Além disso há a relação de ambos com Niles (David Hyde Pierce), um sujeito ainda mais esnobe que Frasier, e sempre um dos pontos altos da série. De alguma forma foi bom chegar tardiamente nesse mundo e saber que ainda há mais de uma dezena de temporadas pela frente. Que universo gostosinho, bicho.
Este artigo aqui da New Yorker, escrito pelo Evan Osnos, sobre a obsessão norte-americana com classe social, que convive paradoxalmente com a negação de sua própria existência, está o fino da bossa.
E para fechar, tem esse desenho aqui, da década de 1940, direção do Chuck Jones, que eu amo de paixão: The Dover Boys at Pimento University. É sobre uns moleques preppy, é ambientado em uma universidade e tem alguma coisa nele, na estética dele, que sempre me sugere algo que inspirou ou poderia ter inspirado early Wes Anderson — de Rushmore, Tenenbaums, sei lá. Dá uma olhadela porque é bonitinho demais.
Que ritmo afinado o de vcs! Aprender, refletir, rir e receber dicas... Muito bom! Tudo de certo nisso! Parabéns! 👏👏👏👏👏👏