Nada de Errado Nisso #5
Ou você morre cortando maconha com facão ou vive pra tirar o Twitter do ar
Um lance que fica bem claro quando a gente é adulto é que muita coisa nessa vida depende pra caramba de momento e referencial. Na adolescência teu maior medo era prova de álgebra mas aí o universo te apresentou reunião presencial de leitura de PPT 16:30 de quinta-feira véspera de feriado; você foi apaixonadíssima por um rapaz quando tinha 23 anos e hoje ele está calvo e compartilhando cortes sobre como “homens de alto valor” não aceitam quando mulher oferece cerveja; Ciro Gomes já foi considerado um candidato viável pra presidência.
E poucas personalidades da nossa república representam tão claramente essa realidade quanto Alexandre de Moraes, o ministro que chegou ao Supremo Tribunal Federal sob indicação de Michel Temer em 2017, foi apresentado à maior parte da população brasileira através de um vídeo onde cortava pés de maconha no Paraguai, e hoje, menos de 10 anos depois, não apenas parece ter se tornado um dos últimos bastiões da democracia em nosso país como recebe defesas entusiásticas de grande parte da nossa esquerda.
Isso significa que Alexandre de Moraes é menos amigo de Michel Temer, o homem que vacilou forte com Dilma? Não significa. Isso quer dizer que a dança que representantes da Comunidade Raposa Serra do Sol fizeram naquele dia tornou Xandão um esquerdista? Provavelmente não. Mas é um grande exemplo de como um cidadão que parecia representar tudo que havia de errado no Brasil acabou virando quase um herói quando a gente descobriu que neste país tinha coisa muito mais errada que ele. Ou isso ou nós aqui da “Nada de Errado” estamos apenas muito animados com a ideia de alguém proibir o Twitter na justiça e não aguentamos não falar sobre isso. Sinceramente, demorou até demais.
Então se nesta sexta de manhã as redes sociais já tiverem sido proibidas por lei, temos aqui um texto do Gabriel sobre o disco novo da Beyoncé que está excelente independente de qualquer referencial, o João abordando algumas questões conceituais sobre a “música de solteiro” e as nossas já tradicionais dicas, onde você vai achar mais música, mas não só música, ainda que sim, bastante música.
E como gostamos de sempre lembrar: se essa newsletter te alegrou, se ela te fez sorrir, se você quer financiar nossa viagem até o Paraguai pra cortar maconha com facão, considere realizar uma assinatura paga da “Nada de Errado Nisso”. Nosso plano básico custa R$ 10, mais barato que um Twitter Premium, e garantimos que nessa newsletter só se comete um crime e ele é “amar demais”.
Algumas adaptações sugeridas para tornar mais realistas as músicas de solteiro que andam sendo produzidas
João Luis Jr.
Poucos processos são mais simbólicos, após um término, do que a tentativa de transição das músicas tristes com temática de pé na bunda, coração partido e solidão, para as músicas mais animadas, normalmente sobre sexo, bebida e não dormir 8 horas por noite.
E tal como aconteceu na evolução humana, em que Australopithecus Africanus e Homo Erectus chegaram a conviver por algum tempo, num processo com etapas que se misturam e sobrepõem de maneira não necessariamente harmoniosa, o mesmo acontece com essa mudança de conceitos musicais - muitas vezes a canção cujo verso te lembra a cor dos olhos da sua ex toca logo antes de uma cujo refrão diz “nós é os cara que joga dentro, a culpa é do meu pau, eu só lamento”. Como diria Walt Whitman e o MC Saci com certeza concordaria, “sou vasto, contenho multidões”.
Mas ainda que a “música de solteiro” gere sim uma mudança de energia e senso de propósito muito necessárias num período em que o cidadão pode ter chegado ao extremo de ouvir 7x no repeat a canção “Sensível demais”, da dupla Chrystian & Ralf, em dados momentos ela acaba se excedendo, partindo para os extremismos e transformando o que deveria ser um processo de libertação e motivação numa situação de pressão, cobrança e flashbacks um pouco pesados.
Pensamos então em algumas adaptações que poderiam ser feitas nos diversos gêneros da chamada “música de solteiro”, para reduzir um pouco as expectativas, baixar de leve a bola e tornar essa transição um pouco mais suave.
Um referencial de putaria um pouco mais baixo: Primeiro é preciso deixar claro que aqui não trabalhamos com puritanismo. Sexo é uma coisa normal, a busca por prazer físico é parte da vida, e ainda que algumas canções que abordam o tema possam sim enveredar por terrenos machistamente equivocados, jamais negaríamos a pegada pra cima, a brisa gostosa, que apenas um bom funk de teor sexual oferece.
Ou seja, o problema não é a putaria, o problema é, vamos admitir, o volume quase opressivo de putaria que é apresentado, criando um referencial de putaria que, na prática, é muito complicado de atingir se você é uma pessoa em idade adulta com certas obrigações e responsabilidades. Quebrar a cama? Não com o preço que está uma Ortobom box de molas ensacadas. Vapo vapo o dia inteiro? Em dia de semana fica realmente ruim pra mim. Comer você e a sua amiga? Primeiramente que isso não parece muito realista e depois que no estado emocional em que eu estou é pressão demais. Fora que eu já tinha preparado a tábua de queijos só pra duas pessoas, custava nada ter avisado antes, agora me atacou um pouco a ansiedade.
Um pouco menos de papo de ex: Uma tendência em vários ritmos, do funk ao sertanejo, as canções com temática de “solteiro dando a volta por cima” são várias vezes um exemplo de ideia que, na execução, acaba se voltando contra sua própria premissa.
Primeiro porque, se você realmente não se importa mais com uma pessoa, você dificilmente precisa fazer uma música dizendo que não se importa - um pouco de esforço demais quando a pessoa diz se importar tão pouco. E depois porque todo o papo de ex pode te levar a, inadvertidamente, ficar ali pensando na sua ex, o que, digamos assim, não é muito condizente com toda a coisa de não estar mais pensando em ex. Meio como virar ateu e aí soltar disco onde 8 das 13 faixas mencionam como você nem liga mais pra opinião do padre do seu bairro sobre as coisas que você faz.
Um segurada no revisionismo histórico: Não se pode negar que todo término tem algo de “Partido Comunista Soviético fingindo que a galera expurgada nos anos 30 nunca existiu”. Tem umas fotos que você vai tirar da parede, tem uns lugares que você vai tentar não frequentar mais, tem alguns momentos em que alguém vai mencionar o nome da pessoa e você vai negar veementemente que ela tenha tido qualquer participação na Revolução, por mais que você saiba que a Revolução não teria sido a mesma sem ela.
Até aí tudo normal, tudo natural. O problema é quando as coisas se excedem, como acontece várias vezes, por exemplo, em canções sertanejas. Falar que o término foi “a melhor coisa que te aconteceu”? Primeiro que a melhor coisa que te aconteceu foi passar em concurso, porque você é terrível em entrevista de emprego, depois que anteontem você ainda tava chorando por causa dessa pessoa. Dizer que “nem lembra mais”? Complicado quando você está caminhando 15 minutos a mais pra ir numa agência bancária em outro bairro pra não ter que passar pela rua onde ela está morando. Assim, bacana, estamos todos superando, mas não adianta forçar a barra também.
Dois lances que andei curtindo aí na quinzena
João Luis Jr
Um disco pro qual venho retornando bastante é o “Ao Vivo na USP”, que o Gil gravou em 1973. Um dos motivos é o fato de ter uma das minhas gravações preferidas de “Eu preciso aprender a só ser”, uma das canções mais lindas que o Gil já fez, além de mais 24 grandes canetadas do homem. Mas o outro motivo é que pega muito pra mim, que nasci em 84 e sempre vi o Gil como um baluarte, uma lenda, um griô, vamos dizer assim, ouvir o homem todo meninão, aos 31 anos, brincando com a platéia e em dados momentos reclamando que a galera não deixa ele terminar o show e ir embora, que ele tem mais o que fazer.
Semana passada assisti “Fallen Leaves”, um excelente filme do Aki Kaurismäki sobre duas pessoas pobres (pro nível europeu) na faixa dos 40 anos que se apaixonam em Helsinque e passam por vários encontros e desencontros, alguns cômicos mas meio tristes e outros tristes mas meio cômicos. É um filme curto, de menos de uma hora e meia, mas muito bonito e com uma visão de romance que consegue ser extremamente crua e realista mas nem por isso menos fofa e romântica.
“If you cross me, I’m just like my father / I am colder than Titanic water”
Gabriel Trigueiro
You go, girl
Na edição passada, escrevi:
Gostem ou não, aceitem ou não, os fãs de rock precisam encarar o fato de que Michael Jackson, Whitney Houston e James Brown são hoje muito mais importantes e decisivos para o pop contemporâneo do que Lennon e McCartney.
O texto foi publicado em 29/03, no mesmo dia em que foi lançado “Cowboy Carter”: o oitavo disco de Beyoncé Knowles. Qual não foi minha surpresa ao ver “Blackbird”, justamente um cover dos Beatles, na segunda faixa do álbum.
Mas, na moral, e daí? É uma regravação que não apenas não desautoriza o meu argumento, como ainda por cima o reforça. Vem comigo.
Paul McCartney compôs “Blackbird” pensando em Little Rock Nine — o grupo de 9 estudantes negros cuja admissão na Little Rock Central High School estava sendo impedida em 1957, pelo próprio governador do Arkansas, mesmo depois da decisão da Suprema Corte de 1954 que forçava a dessegregação do sistema escolar norte-americano.
Em entrevista recente à NPR com Melba Pattillo Beals, uma das integrantes da turma de Little Rock Nine, há um bom resumo da coisa:
“Cowboy Carter” é um épico que bebe na mesma tradição (literária, oral e musical) que alguém como Bob Dylan sempre bebeu. Dylan, um homem judeu de Minnesota, aprendeu, através de mimetismo e autoficção desavergonhada, a fazer música de negros (blues, country e folk) no Village, em Nova York. Por que diabos uma mulher negra texana não poderia gravar um disco de country, ainda que heterodoxo?
Paul McCartney uma vez afirmou, em uma entrevista de 1987:
Dois dedinhos de prosa sobre Arthur Alexander
Esse tal Arthur Alexander, citado por Paul, foi um compositor do Alabama, de um gênero que na época chamavam de country-soul — uma variação da soul music do Sul dos EUA, que meio que representava um ponto de interseção entre o country, o R&B, o blues e mesmo o gospel das black churches da região.
Lembro da alegria que foi descobrir, lá com meus 20 e tantos anos, que uma das minhas músicas favoritas dos Beatles, “Anna (Go To Him)”, não era deles, e sim uma regravação de Alexander — homem negro, pioneiro do country e da soul music nos EUA.
O sujeito teve suas canções gravadas por artistas como Otis Redding, Tina Turner, Bob Dylan, Rolling Stones e os próprios Beatles. Embora tenha influenciado uma geração de artistas importantes, uma indústria musical segregada e pautada pelo whitewashing matou por asfixia a sua carreira. Em meados dos anos 1970, Alexander havia largado tudo e virado motorista de ônibus.
Já na década de 1990, ensaiou um retorno aos palcos: mas um mês após assinar contrato com uma gravadora, para lançar um novo disco de estúdio e tal, sofreu infarto e faleceu.
Dá para perceber a urgência de um disco como “Cowboy Carter”?
Whitewashing aqui é mato
Tem uma hora em “Cowboy Carter” que escutamos um trecho de “Maybellene”, a canção de Chuck Berry de 1955 que inspirou, e só não coloco aspas para sinalizar ironia em inspirou porque nada mais cafona do que sinalização de ironia, um jovem Elvis Presley a entrar no mundo da música. Mas a que custo, né.
Além disso, também escutamos um fragmento de “Good Vibrations”, dos Beach Boys. Os mesmos Beach Boys que copiaram o riff de “Roll Over, Beethoven”, de Chuck Berry, em "Fun, Fun, Fun".
Como Tressie McMillan argumentou certa vez no NYT:
Se o country é repleto de murder ballads, um gênero que romantiza os desejos humanos mais sombrios e homicidas, por que não é considerado romântico quando é uma mulher negra quem comete o assassinato? Se o country fala da defesa do lar e do amor romântico, por que a família de uma mulher negra não é um modelo de família americana pelo qual vale a pena lutar? O único jeito que o country tem de responder de modo honesto a todas essas questões é discutindo raça e gênero, racismo e sexismo, história e poder. Mas esses assuntos são todos proibidos, pelo visto.
Tradição e futuro
Beyoncé poderia ter entrado em estúdio e gravado um disco conservador: formalmente perfeito e excessivamente reverente ao cânone. No entanto, o que ela fez foi muito maior, mais corajoso e relevante. “Cowboy Carter” honra a tradição: Linda Martell está lá, uma pioneira do gênero, apagada da história apenas por ser uma mulher negra. Mas também olha para o futuro: Tanner Adell, Brittney Spencer, Reyna Roberts, e Tiera Kennedy — a nova geração, inventiva e algo vanguardista, também está presente.
Em seu disco anterior, Beyoncé iniciou um projeto artisticamente ambicioso, resgatar as origens negras de gêneros artificialmente embranquecidos ao longo de décadas: como a house music, em “Renaissance”, e o country, agora em “Cowboy Carter”.
Os palpites sugerem que o próximo disco fará justiça ao rock: de Little Richard, Chuck Berry, Bo Diddley até Tina Turner e Prince: boas referências é que não faltam, claro.
Francamente nada resume melhor toda essa discussão do que aquilo que uma vez Kamasi Washington falou:
Ah, e antes que eu me esqueça!
Gabriel Trigueiro
Lembrei hoje deste esquete maravilhoso do SNL, “The Day Beyoncé Turned Black", da época do “Lemonade”:
Já que estamos temáticos, este filme aqui, “Cadillac Records” (2008), escrito e dirigido por Darnell Martin, é sobre a Chess Records: a gravadora histórica de Leonard Chess (interpretado por Adrien Brody), especializada inicialmente em R&B e blues e responsável posteriormente pela popularização do rock and roll, enquanto ele ainda estava engatinhando. Beyoncé interpreta Etta James, Mos Def é Chuck Berry etc. Mara demais.
Pharrell Williams lançou uma mixtape de nome excelente e sonoridade gostosinha: “Black Yacht Rock, Vol. 1: City of Limitless Access”. Você pode escutá-la e baixá-la aqui.
Isto aqui é ouro: um curta de Agnès Varda, com ela trocando ideia com Pasolini, enquanto os dois caminham por Nova York, no final dos anos 1960.
Acabo de ler “O púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos”, da Anna Virginia Balloussier, lançado pela Todavia. Leia e pare de falar besteira sobre um grupo que é, antes de qualquer coisa, complexo e heterogêneo para um grande caralho. Livraço.