Nada de Errado Nisso #17
Quem bate nos debatedores?
Diante do clima de medo, delírio, socos e cadeiradas nos debates entre os candidatos à prefeitura de São Paulo, muitas questões pertinentes foram levantadas. Candidaturas de perfil antidemocrático não deveriam ser ilegais? Políticos que usam o espaço midiático para promover violência e divulgar mentiras, não deveriam perder suas plataformas? Como até hoje só uma pessoa agrediu Pablo Marçal com um item de mobiliário, mesmo ele estando tranquilamente na lista dos dez brasileiros que mais mereceram tomar cadeirada nesse século?
Porém uma outra questão, ainda mais grave, segue sendo completamente ignorada pela grande mídia, pelos comentaristas de redes sociais e até mesmo pelas pessoas que intercalam informações médicas um bocado graves com dancinhas divertidas no Tik Tok: por que o Brasil esperou tanto tempo para introduzir, em seus debates políticos, a figura do ex-apresentador televisivo de temperamento caótico?
Sim, Sílvio Santos quase foi candidato a presidente e Ratinho teve um - provavelmente terrível - período na política, como vereador e deputado, mas não é óbvio o quanto essa categoria profissional já tão acostumada a cativar o público brasileiro ainda tem a oferecer?
Imagine, por exemplo, Celso Portiolli apresentando um debate com regras do programa Passa ou Repassa, ou Ana Maria Braga candidata a governadora utilizando Loro José como candidato fantoche, da mesma maneira que Bolsonaro fez com Padre Kelmon. Não era Amaury Junior um político do Partido Novo muito antes do próprio Partido Novo Existir? Regina Volpato não surpreenderia candidatos substituindo perguntas clichê sobre habitação e segurança por coisas como "você perdoaria uma traição?", "tamanho é documento?" ou "se meu namorado engravida a namorada de um condenado por homicídio, você acha correto que eu avise o preso pra que ele mate o meu namorado por mim?" E que oportunidade não perdemos todos nós por nunca termos tido Antônio Abujamra num debate presidencial, substituindo questões sobre economia que ninguém nunca responde de verdade por um "o que é A VIDA?" dito com aquele olho no olho e aquela série de repetições que levariam qualquer um a loucura?
E é pra oferecer esse tipo de contribuição positiva à sociedade brasileira que nós da “Nada de Errado Nisso” trazemos até a sua casa mais uma edição, com Gabriel falando sobre a magia da série “Industry” e João lembrando casos em que a mentira é essencial para o convívio humano. Temos também as queridas dicas da redação e, claro, nosso convite carinhoso pra que você, que já nos prestigia com seu carinho e atenção, nos prestigie também com seu dinheiro, já que ok, carinho e atenção podem sim pagar as contas, mas sinceramente nos consideramos um pouco além da idade pra virar sugar babies, pessoal realmente parece estar focando nuns caras um pouco mais novos. Mas sério, assinatura aqui apenas dez reais, vem com a gente que está gostoso o momento.
Pequenas mentiras que causam um certo senso de alívio e felicidade que uma verdade dificilmente causaria
João Luis Jr.
Sinceridade é um negócio bonito, sinceridade é um lance importante. Falar a verdade quase sempre facilita a comunicação, não esconder coisas deixa a consciência mais leve, dizer o que você sente com frequência ajuda a economizar um pouco com terapia e medicamentos.
Mas ainda que todo mundo diga que adora caminhar na praia e odeia falsidade e não o contrário, existem momentos em que nada substitui uma boa mentirinha, uma não-verdade bem colocada, aquele ilusionismo retórico de oportunidade.
Seja porque algumas pessoas confundem grosseria e apetite por conflito com sinceridade, seja porque tem coisas que mesmo sendo verdade ninguém quer ouvir, seja pelo simples fato de que às vezes a inverdade acaba sendo a graxa que mantém rodando as engrenagens da sociedade. A realidade é que existem situações em que a verdade é um problema e apenas uma mentirinha paliativa consegue servir de remédio.
“Não é você, sou eu” — Ainda que muitas pessoas tenham antipatia por essa construção, acabei me tornando um grande defensor dessa retórica de término, por uma variada gama de razões. Primeiro porque é terrível tomar um pé na bunda e a pessoa ainda te falar que a culpa é sua. Depois porque ela sinaliza que existe no outro ao menos alguma vontade mínima de te preservar, ou seja, a pessoa não quer mais ficar contigo mas você também não fez nada pra ela te odiar a ponto de mirar na sua cara e impedir que seu funeral emocional tenha o caixão aberto.
Claro que é bacana receber um feedback sincero, e óbvio que fica falso quando a pessoa entra na onda de te elogiar demais como se você fosse um Chevette Junior 92 que ela tá anunciando no site WebMotors, mas ali, na hora da porrada, às vezes vale mais uma falsidade simpática do que uma sinceridade que vai te deixar chorando em posição fetal e te impedir de ir ao trabalho no outro dia.
A pessoa que pergunta se você poderia/gostaria de fazer uma coisa que você é obrigado a fazer — Outra forma de falsidade cortês que muita gente considera irritante, consiste no chefe que te pergunta se você “poderia” fazer tal relatório pra ele, sendo que fazer esse relatório é o seu trabalho, ou naquelas vezes em que sua mãe pergunta se você “gostaria” de ir falar com seus tios sendo que se você não for ela vai reclamar até você se arrepender.
É uma construção vazia de significado? Sim, claro. Mas existe algo de gentil quando a pessoa tenta ao menos te oferecer uma falsa sensação de escolha ao invés de apenas dizer “faz isso aqui agora ou vai pra rua” ou “se não falar com seu tio nesse instante vai dormir sem janta e eu vou externar minhas opiniões sobre a sua vida pessoal”.
Atendente que diz que vai “ver o que pode fazer”: Poucas áreas profissionais são tão existencialmente dependentes da falsidade quanto o atendimento ao consumidor. É a comissão que só vem se você falar pro cliente que ele está excelente naquela roupa horrenda, é a necessidade de não mandar tomar no cu o cidadão que pergunta quantos camarões tem no pastel de camarão, são inúmeras interações que só conseguem terminar bem porque a necessidade de pagar as contas levou uma pessoa a mentir.
Por isso eu sempre valorizo toda demonstração de boa vontade de alguém que esteja me prestando um serviço, por mais obviamente falsa que ela seja, por mais que ela na prática não faça diferença, por mais que eu saiba que ele não vai realmente ver se tem no seu tamanho, ele vai apenas sair do meu campo de visão e olhar o Instagram por um minuto antes de dizer “é, realmente não tem, senhor”. Não é sincero, não é de coração, mas é uma gentileza e deveria ser vista dessa maneira.
Todos os “sinto muito” que eu ouço: Sei que a moça da Latam não está realmente triste porque meu voo foi cancelado, tenho plena consciência de que o rapaz da Light não lamenta mesmo que minha luz tenha sido cortada por engano, não é que eu acredite que o pessoal do Popeye’s tá inconsolável porque não mandaram refrigerante no combo de pedacinhos de frango que eu pedi.
Mas é que, em primeiro lugar, é legal quando a pessoa ao menos performa essa lamentação, como forma de reconhecer que bem, realmente houve o vacilo, realmente você tá na sua razão, implicitamente você está recebendo um mínimo de validação após passar a sua raiva. E depois porque, enquanto pessoa que mora no Rio de Janeiro, eu já tive a experiência de reclamar de uma entrega que veio errada e receber com resposta um “e daí? vai fazer o que? vai chorar?” e posso afirmar que um “sinto muito” 100% falso ainda é bem melhor que um “chora aí então, otário” 100% sincero.
Charles Dickens e TikTok
Gabriel Trigueiro
Digamos que você nunca tenha ouvido falar de “Industry”, a nova (bom, se é de 2020 dá pra dizer que é nova, né?) série da HBO. Não tem problema algum, imagina, ninguém aqui vai te julgar e tampouco acha que você tem que ser cadelinha de qualquer hype. Eu mesmo não sabia do que se tratava, até que estreou a terceira temporada e alguns críticos que curto reagiram com entusiasmo. Daí resolvi começar, há coisa de um mês, e vou tentar te convencer aqui a fazer o mesmo. Confia.
Em poucas palavras, “Industry” é um workplace drama ambientado num banco de investimento londrino fictício, chamado Pierpoint. Na primeira temporada somos apresentados a alguns jovens, egressos de Oxford e de outras instituições de ensino de elite, que sonham ascender profissionalmente como analistas de investimento de sucesso no mundo corporativo.
Slavoj Žižek uma vez afirmou que a maior vitória da primeira-ministra Margaret Thatcher não foi tomar de assalto o Partido Conservador britânico, e moldá-lo à sua imagem e semelhança, mas sim inocular sua ideologia ultra liberal no próprio Partido Trabalhador.
Assim que o Novo Trabalhismo de Tony Blair e Gordon Brown abraçou a agenda econômica dos Conservadores da Era Thatcher, houve a adoção, irredutível e de porteira fechada, de uma determinada linguagem, esquemas interpretativos e imaginação política dos adversários.
Trocando em miúdos, a maior vitória de Thatcher foi ter criado não somente o thatcherismo, mas sobretudo o thatcherismo novo-trabalhista.
“Industry” é uma série sobre o sistema de classes britânico e esse legado ideológico thatcherista na cultura, ainda mais do que na economia. Konrad Kay e Mickey Down, seus criadores, ambos com passagem no mercado financeiro, escutam com frequência a comparação mais ou menos óbvia sobre sua obra: “Succession”, no lado gente rica fazendo riquice da coisa, mas também “Euphoria”, juventude usando droguinha e fazendo putaria.
Não que sejam comparações de todo descabidas, claro, mas “Industry”, na verdade, é dickensiana, não somente na temática social, mas no tratamento folhetinesco dramático e cômico dos personagens, ainda que adaptada à uma estética TikTok.
Além disso, é uma série que implodiu algumas das convenções, ou cacoetes narrativos, daquilo que se convencionou chamar de prestige drama — sobretudo a obsessão aborrecida por personagens com backstories baseados exclusivamente em trauma e luto.
Veja bem, não é que a turma de “Industry” não seja totalmente totó das ideia: cheia de mommy issues, daddy issues, etc. Mas o ponto fundamental é o de que a história não fica nunca refém de flashbacks, e de remissões excessivas ao passado, como “Mad Men” e “The Bear”, para citarmos apenas dois exemplos agora, sem pensar muito. A história sempre avança. Em “Industry”, o ritmo é tudo.
Outro aspecto interessante, é a trilha sonora original, composta por Nathan Micay: plástica, atmosférica e atordoante. Num momento em que o fim da tal da “Era de Ouro da TV” é decretado dia sim, dia não, “Industry” nos oferece uma mistura inovadora de romance de formação vitoriano com OnlyFans e Ketamina.
Tem alguma coisa também de “Les Liaisons dangereuses”, de Pierre Choderlos de Laclos, que retratava no final do século 18 a decadência moral privada da aristocracia francesa, nos momentos que antecedem a queda do Antigo Regime.
Konrad Kay e Mickey Down criaram com “Industry” algo análogo: um conto moral sobre o sistema vigente e a corrupção espiritual de sua classe dominante.
Ao longo das duas primeiras temporadas foi aparando as arestas e corrigindo suas imperfeições: a terceira temporada, essa que está agora no ar, é uma das coisas mais legais que você vai ter a oportunidade de assistir nesse momento da TV americana. Quem avisa, etc.
Ah, e antes que eu me esqueça!
Estou terminando este livro aqui de 2006, que é basicamente uma longa conversa do Norman Mailer com seu filho, John Buffalo Mailer, sobre os famosos grandes temas. Maravilhoso é pouco.
Na moralzinha, a casa do Lil Baby.
Este vídeo da galera da “Trash Theory”, sobre o contexto histórico no qual o “Blue Album” do Weezer foi lançado.
Mas afinal de contas, o que é que tá rolando com a direita cristã nos EUA?
Uma entrevista com Nathan Micay, o responsável pela trilha de “Industry”.
Anne Carson sobre Parkinson e começar a lutar boxe com 74 anos de idade.
Se a princesa Jasmine podia confiar num homem que conversava com macaco, você pode confiar na gente
João Luis Jr.
Seguindo minha emocionante jornada pelo mundo dos reality shows, estou acompanhando a primeira temporada do programa "Muquiranas Brasil", a versão nacional do programa sobre pessoas cuja necessidade de economizar varia entre "faço meus próprios equipamentos para não gastar com academia" até "meu papel higiênico usado é reaproveitado pra limpar o fogão", com absolutamente todos os intervalos possíveis entre esses dois pontos do espectro. 50% estudo do impacto do capitalismo sobre a psique humana e 50% oportunidade pra algumas pessoas fingirem que só dão uma descarga por semana pra aparecerem num programa de TV, "Muquiranas Brasil" é 100% entretenimento.
Essa história aqui sobre as duas mulheres, uma indiana e uma nepalesa, que enfrentaram preconceito, pandemia e as leis dos seus países para que pudessem se casar do outro lado do mundo me pegou bastante e não nego que dei algumas choradinhas, porque realmente um negócio bonito (ainda que, obviamente, a gente só precise ler uma história de superação desse tipo porque vivemos num mundo absolutamente escroto e não era pra que elas tivessem precisado superar nada disso e etc e etc).
Enquanto pessoa de origem preta e pobre que acabou de comprar um apartamento, toda essa questão de riqueza geracional e reparações me pega muito, e esse artigo sobre como os escravizados que ajudaram o norte na Guerra Civil americana receberam um pouco de terra para se estabelecer mas depois tiveram essa terra tomada deles - e os impactos disso nas gerações que vieram a seguir - me derrubou bastante. Perfeito se você quer se irritar com as ações de políticos já falecidos de países onde você nunca residiu.
Seguindo na onda do desgraçamento mental, esse artigo sobre a "cultura da dopamina", e como precisamos de cada vez mais estímulos, com cada vez mais intensidade, tem um tiquinho de alarmismo, um cadico de simplificação e em dados momentos me senti meio "velho grita com nuvem" mas me parece sim ser a direção pra onde estamos indo, não é só implicância minha porque não entendo direito o Tiktok e odeio quando as receitas são só em vídeo, sem uma versão em texto logo embaixo.
Por fim, terminando numa nota mais animada, recebi de vários amigos esse texto da Piauí sobre o cara que correu 366 maratonas seguidas, uma por dia, e acho que é dessas histórias que são fascinantes até pra quem não corre, além de me lembrar o fato de que sempre que a gente completa uma maratona sem morrer tem um soldado grego, lá no pós-vida, que provavelmente comenta “ah, mas de tênizinho e sem conflito armado acontecendo é fácil, queria ver de sandália, com a porrada moendo de todo lado”